Gael García Bernal
01.abril.2004
Muso Independente
Tania Menai, de Nova York
Aos 25 anos, o ator mexicano Gael Garcia Bernal não sabe o que é ser coadjuvante. Estrela de filmes como Amores Perros, Y Tu Mamá También e El Crimen del Padre Amaro, alguns deles, indicados ao Oscar, Gael é o xodó de diretores-ícones do cinema internacional. Interpreta quatro papéis em La Mala Educación, filme de Pedro Almodóvar que abrirá o próximo Festiva de Cannes – e ainda vive Ernesto Guevara em Diários de Motocicleta, a última obra de Walter Salles. O filme reproduz a viagem de Che, que aos 23 anos, e em companhia do amigo Alberto Granado, deixou a faculdade de medicina, a namorada e a Argentina, para rodar a América Latina de moto. Gael, que se divide entre México e Nova York, é um apaixonado pelo Brasil. Chega a colecionar gírias cariocas como “ó-o-auê-aí-ó”. Dono de um par de olhos verdes e simpatia ímpar, ele conversou com a Oi no East Village, em Manattan, bairro boêmio que escolheu para viver.
Como foi construir um personagem como Ernesto?
Foi quase um trabalho de historador. Apesar de toda preparação, a estrada reservava supresas. Não conhecia os lugares onde estaríamos filmando. Normalmente, nós, atores, escrevemos o perfil de nossos personagens para nos ajudar durante as filmagens. Neste caso, o trabalho já estava feito – e era vasto. Durante três meses e meio recriamos o estilo de vida de Ernesto e Alberto, lemos os livros que eles estavam lendo na época, assistimos aos filme dos anos 50, estudamos a história do Peru, da Argentina, do Chile. Ainda treinamos em motocicletas três vezes por semana, sem contar as aulas de sotaque argentino – mais especificamente de Córdoba – duas vezes por semanas. Um personagem real nos proporciona muitas plataformas como base. Por outro lado, torna-se um desafio maior. Che Guevara foi quase um mito. Mas a intenção do filme é desmitificá-lo, apontar suas incongruências, dúvidas e maneiras de pensar. Queríamos mostrar quem era o Ernesto antes de ele se transformar no famoso Che.
Como você acha que Che reagiria se visse o filme?
Levaria tudo como uma grande brincadeira e diria algo como “queria que tudo isso tivesse sido tão fácil quanto parece” ou “quem dera se eu estivesse assim, tão feliz” ou “queria mesmo ter dormido com mais garotas”.
Por outro lado, Alberto Granado, parceiro de Che na viagem, hoje com 81 anos, acompanhou partes da filmagem. Chorou ao assistir a cena em que os meninos abandonam a moto e a parte em que eles cruzam o rio Amazonas de barco. Por quê?
Na vida real, ele chorou quando se despediu da moto – é como se ele tivesse deixado ali sua junventude. Ele chegava a conversar com a motocicleta – ela era uma parceira. A cena do rio revela o porquê Che foi tão importante para a humanidade. Como escreveu Juan Martín, seu biógrafo: “O homem verdadeiro não vive do lado em que se vive bem – vive do lado do dever”. Os rapazes cruzaram o rio para cuidar de uma colônia de leprosos – onde estava o dever. Esta experiência foi a grande virada do filme.
Houve alguma grande virada como esta na sua vida?
Várias. Aos 15 anos, passei 3 meses com os índios Huichol. Eles vivem numa montanha na qual se leva dois dias para chegar vindo de Guadalajara, onde nasci – não há estradas. Ensináva-lhes a ler e a escrever. Na América Latina, costumamos nos espelhar na Europa, de onde viemos. Contudo, busquei o outro lado, o inconvencional. Isso marcou o início da minha vida adulta. Uma outra experiência forte foi quando senti medo pela primeira vez. Aos três ou quatro anos fui levado a uma ingeja. Aquelas imagens penduradas e Cristo sangrando na cruz me apavoraram.
Esta lembrança cruzou a sua mente durante as filmagens de El Crimen de Padre Amaro, no qual você é o protagonista no papel de um jovem padre?
Claro, é impossível me desvencilhar dela – está armazenada na psique. No filme, eu dizia “Que o Senhor esteja contigo e com o seu espírito” – e isso dava me arrepios. Culturalmente, sou católico porque é assim que se vive na América Latina. Mas meus pais são ateus.
Seus pais são atores. Como isso lhe influenciou?
Crianças gostam de estar perto de seus pais – estar perto dos meus significava estar atuando. A influência foi direta na minha carreira. Aos 13 anos, deixei Guadalajara para viver na Cidade do México. Aos 15 anos já trabalhava em peças de teatro. Cheguei a fazer um curta. Mas naquela época tudo ainda era um jogo. Depois ingressei na Universidade Autônoma, para estudar filosofia. O curso não passou de seis meses; a universidade entrou em greve. Então fui para Londres estudar teatro. Na época eu estava com 18 anos. Me formei há apenas dois anos. Quando fiz Amores Perros e Y tu Mamá También, eu ainda era estudante. Ter me aprofundado em Shakespeare e atuado em inglês agregou muitos pontos à minha carreira.
O que você aprendeu com os grandes diretores com quem já trabalhou?
De cada um, aprendi um pouco – até porque suas idades variam de 25 a sessenta e pouco anos. Eles diferem em seus estilos, na forma de alocar a câmera ou dirigir os atores. Todos têm pontos-de-vistas muito particulares e não os comprometem de forma alguma durante as filmagens. São livres. Assim nascem os bons filmes. Desta forma, até um filme que se passa numa pequena cidade, pode ser universal - sentimentos humanos podem ser compartilhados em qualquer lugar.
Walter Salles lhe ensiou algo em especial?
Walter é o melhor ser humano que já conheci. Houve telepatia entre nós – além de ser um ótimo diretor, ele foi um mentor. Ele acredita em seus projetos, e os faz de sua maneira; Central do Brasil, por exemplo, é muito “ele”. Ao mesmo tempo, ele tem qualidade de bruxo - sempre sabe o que está acontecendo. Admiro sua energia e a garra de fazer um filme tão trabalhoso quanto este. A equipe era composta por gente de toda a América Latina. Ainda assim, não foi caótico em momento algum. O clima só esquentava quando resolvíamos jogar futebol.
Hoje você vive entre Nova York e México – e, provavelmente, não tem uma rotina...
Depende. No ano passado, fiquei três meses no México – joguei futvôlei, assiti ao Puma, time de futebol todos os domingos, li todos os livros que estavam empilhados – tento me disciplinar a ler diariamnete durante três horas – e tentei fazer exercícios, algo que nunca encontrei tempo para fazer direito. E, claro, vou muito ao cinema e a museus. Quando estamos trabalhando, não temos tempo para isso. Tenho de aprender a “fazer nada” – quando não estou “fazendo nada” é quando eu mais produzo.
Desde Como água para Chocolate, lançado no começo dos anos 90, o cinema mexicano está florecendo. O que está acontecendo?
O mesmo o que acontece na Argentina e no Brasil. Hoje os filmes custam menos, por isso o cinema renasceu. Além disso, o público quer assistir filmes que exponham pontos-de-vista fortes. Por exemplo, não há ninguém como o Walter Salles. Ele deixa suas impressões digitais em tudo que faz. Para mim, um roteiro de filme tem de revelar algo urgente e necessário. A necessidade de contar uma história tem sido a força motriz para os diretores de hoje. Mesmo assim, colocar dinheiro numa produção cinematográfica ainda é arriscado. Se o filme for um sucesso, ótimo. Caso contrário, é uma catástrofe. Na América Latina ninguém tem um milhão de dólares para jogar fora, como acontece nos EUA. Os governos têm outras prioridades, o que é justo. Ainda assim, estes governos devem colaborar, como na Argentina e no Brasil. Gilberto Gil passou uma lei na qual todas as salas de cinema do país tem de mostrar filmes brasileiros durante dois meses por ano. Desta forma se cria um público - e daqui a dez anos haverá uma indústria sólida e independente. No México não há nada disso, é terrível. Espero que isso mude com o novo governo – com um “Lula mexicano”.
Filmes estrangeiros estão invadindo o Oscar. Será que o cinema americano está tão ruim que já não se sustenta sozinho?
O cinema americano se tornou corporativo – filmes são testados em pesquisa de mercado com consumidores, como qualquer outro produto. Isso não funciona - e ridiculariza o público. E eu, como público, quero assistir filmes que me respeitem como uma pessoa pensante. Por esta razão, nos enjoamos dos filmes americanos. Ainda assim, pagamos o ingresso. Lembra de quando você ia ao cinema durante a infância? Cinema era uma grande coisa, era como se estivéssemos entrando num novo mundo. Hoje não é mais assim. A notícia boa é que os novos filmes estrangeiros estão resgatando este sentimento – eles questionam as áreas sociais, políticas, culturais. O público precisa disso - por isso, estes filmes têm recebido tamanha atenção - ainda não o tanto que merecem. Apoio estes filmes como se eu estivesse na torcida de uma arquibancada. Este é só o começo. Como água para chocolate arrecadou 20 milhões de dólares nos EUA, e provou que um filme como este também pode ser lucrativo.
O que você pensa de atores como Salma Hayek, Penélope Cruz e Antonio Banderas que atuam em Hollywood. Será que eles perdem certa autenticidade?
Sim. Mas é duro atuar em outro idioma. Senti isso quando atuei na Inglaterra. Admiro os atores que se aventuram desta forma. Salma Hayek era atriz de novela no México. Batalhou e hoje é uma grande estrela. É bom saber que temos oportunidade de trabalho nos EUA, na Europa e na América Latina. Dizemos “sim” pela experiência. Respeito os que querem construir um império nos EUA – mas esta não é a minha praia. Meu desafio é fazer com que os pequenos filmes explodam. Atuar no meu próprio idioma, principalmente no México, é onde posso voar. Ainda quero produzir filmes, voltar para o teatro - e dirigir. Mas só quando tiver algo a dizer.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
---
voltar |