Músico incidental
08.março.2001
Tania Menai
Quem assistiu ao curta brasileiro indicado para o Oscar, "Uma história do futebol", do diretor Paulo Machline, deve ter reparado nas belas imagens, na narração de Antônio Fagundes e nos contos sobre o Dico - mais tarde, o Pelé. Mas quem prestou atenção mesmo, não deixou de perceber a trilha do filme, assinada pelo compositor e pianista Marcelo Zarvos. Nascido em São Paulo, ele desembarcou nos Estados Unidos aos 18 anos. Estudou música em Boston e na Califórnia durante quatro anos antes de seguir para Nova York, onde vive desde 1993. Aos 31 anos, Zarvos é dono de uma ascendente carreira que inclui três CDs - "Dualism", "Labyrinths" e "Music Journal" - shows, composições para o cinema e dança. Zarvos deixa seu telefone desligado até uma da tarde, enquanto mergulha em suas composições. O encontro com o NO. aconteceu às 3 da tarde, num café que ele mesmo escolheu, com sofás de veludo colorido e uma moçada alternativa com laptops numa mão e café latte na outra. Enfim, um canto aconchegante no sisudo Upper East Side. "Mesmo assim ainda tem muito yuppies aqui. Pode reparar. Não é downtown".
Como foi o seu envolvimento com Uma História do Futebol?
Marcelo Zarvos - Conheci o Paulo logo que vim morar em Nova York, há uns 8 anos. Ele pensava em estudar cinema aqui e já tinha a idéia de fazer o curta. Só que ele teve de voltar para o Brasil. Três anos atrás, ele finalmente se mudou para cá, me viu tocar na Knitting Factory várias vezes e me chamou para compor a trilha. Em 1999, o curta ganhou o Shorts International Film Festival, aqui em Nova York. No ano seguinte, este festival passou a fazer parte da triagem que classifica os curtas a serem indicados para o Oscar. O legal é que, ao contrário dos longas, não tem lobby. Basta submeter o trabalho.
Qual a diferença entre criar a trilha para um filme e compor por compor?
M.Z. - Num filme você já tem uma motivação bem clara. A história deste filme, por exemplo, é próxima do coração de qualquer brasileiro. Entre Pelé, futebol e infância não precisa dizer mais nada. O filme foi finalizado durante a Copa de 98. Inclusive entramos no estúdio na segunda-feira seguinte ao jogo no qual a França derrotou o Brasil. Foi meio drástico. O Paulo estava na França e, praticamente, só escutou a música quando tudo já estava pronto. De qualquer forma, ele já tinha me dado total liberdade de criação. Foi a primeira vez em que um diretor já viu meu trabalho pronto. Não foi por opção, mas foi assim. Mas ele gostou. Antes tivessem mais situações com essa liberdade...
E o seu trabalho no "Bossa Nova"?
M.Z. - Neste filme trabalhei com o compositor Eumir Deodato, fazendo cinco cenas que não tinha a ver com bossa nova. Foi muito interessante trabalhar com o Eumir, o Bruno e a Lucy Barreto, além do editor de música. Todos foram para minha casa, onde fizemos boa parte do spotting (a escolha das partes vão levar a música). Foi muito legal. O Bruno e a Lucy são praticamente a história do cinema brasileiro. Compus também a trilha inteira de "Truth about Tully", um filme independente americano, que também ganhou diversos festivais. Ele foi comprado recentemente e será distribuído. Ele é lindo, se passa numa fazenda em Nebraska, por isso a música tem bastante coisa de grass e country music. Os diretores me chamaram depois de terem visto "Uma História do Futebol" num dos festivais. Inclusive, o editor do filme, Afonso Gonçalves, é brasileiro, tem uma belíssima carreira. No final do ano passado, ainda fiz um documentário para a PBS, chamado "Bufallo War", sobre a matança dos búfalos em Montana.
Qual o papel do cinema na sua carreira?
M.Z. - Quando vim para os Estados Unidos, minha idéia era estudar música para cinema. Só que ao chegar, notei que a cadeira era muito especializada. Decidi então estudar piano e composição. Eu precisava ter uma base de música em geral, tocar, compor, passear por vários estilos. Mas sempre quis fazer cinema e muitas pessoas me diziam que a minha carreira caminhava para esta direção. Então esperei até aparecer a oportunidade certa. Acho muito interessante como os diretores de cinema e coreógrafos escutam música. É uma coisa nada especializada. Pelo contrário. A pior coisa é quando um diretor de cinema quer interferir nos acordes e detalhes - tirando os que são músicos, geralmente eles não são os mais entendidos.
Como foram os primeiros anos como músico?
M.Z. - Sempre toquei diferentes tipos de música. Comecei com rock n'roll, ainda no Brasil. Cheguei a tocar teclado no grupo do Supla. Depois vim para os Estados Unidos, abandonei o rock e estudei muito jazz e música clássica. Mas, inevitavelmente como todo brasileiro que mora fora, comecei a prestar atenção na música brasileira. Toquei na noite, com a Bebel Gilberto e outros músicos. Então acabei dividindo meu tempo entre esses três tipos de música - brasileira, clássica e jazz - sempre buscando a combinação entre elas. Procurei diferentes pessoas, mas vi que a única maneira seria criar por conta própria. Foi o que eu fiz. Chamei músicos chave de cada uma dessas áreas: Peter Epstein, um saxofonista de jazz, Dorothy Lawson, uma violonista clássica, que toca na Filarmônica de Nova York, e o Mauro Refosco, um percussionista brasileiro que mora aqui. Escrevi as músicas pensando neste grupo. A cada dois anos, gravamos um novo cd. No ano passado gravamos o Music Journal. Mas tenho um pool de músicos, com clarinetistas, saxofonistas, violoncelistas e percussão. Não é um grupo fixo, pois sempre um ou outro estão ocupados.
Uma vez você mencionou a influência do escritor argentino Jorge Luis Borges nas suas músicas. Como é isso?
M.Z. - Certos livros e escritores sempre me influenciaram muito. O Borges foi um deles. O título do CD Labyrinths foi tirado de um de seus contos, Labirinto. Sempre me interessei pelos contos dele, por causa da coisa fantástica, da mistura de ficção com realidade, como em "A Loteria de Babel". Ele nunca nos diz aonde termina a história real e começa a ficção. Acho esse conceito maravilhoso. Ele também lida com a idéia, o insight e o poder dos nossos sonhos. Ele vê tudo isso de uma maneira menos crua do que foi vista no século 20. Tem mais poesia, mais humor. Inclusive certos pedaços de músicas do Labyrinths ou até músicas inteiras, resolvi em sonhos. Às vezes fico compondo até a hora de dormir, pego no sono e continuo compondo.
Algum outro autor em mente?
M.Z. - Paul Bowles, autor de "O Céu que nos protege". Ele era um compositor que foi morar no Marrocos e virou um escritor maravilhoso. Escrevia muito sobre a vida do estrangeiro, que é muito interessante para nós, "estrangeiros profissionais". Inclusive estive no Marrocos no final do ano passado. Acho que vou fazer algum projeto de disco sobre ele, como aconteceu com o Borges. Não é uma coisa literal, é algo mais geral. O engraçado foi que mais tarde fiquei sabendo que o Bowles pegou algumas coisas do Borges para traduzir. Essas coisas todas acabam se conectando.
Falando em "estrangeiro profissional", como é ser um músico brasileiro em Nova York?
M.Z. - Interessante. Metade das coisas que faço tem a ver com o fato de eu ser brasileiro. Metade não, como na área de filmes. Sem dúvida a influência da música brasileira me abriu várias portas, mas minha intenção não é tocar com o meu grupo em lugares aqui em Nova York como o SOBs (casa em que tocam música brasileira e internacional). Ao mesmo tempo, a minha música não é clássica. É algo no meio do caminho. As pessoas me procuram por razões variadas. Há três anos me chamaram para fazer parte do conselho de música do Americas Society, que tem uma das séries de música de câmera latina de Nova York. Então não me procuram apenas pelo meu trabalho, mas pela minha visão.
Como vai a música brasileira?
M.Z. - Geralmente, nossa música é tachada: ou é samba, música high energy, ou é Tom Jobim. Mas é uma música que tem uma variedade imensa. Acredito que a música popular americana e a brasileira sejam as maiores fontes de música do planeta. No caso dos EUA, pela própria situação de poder deles, é natural que isso aconteça. Mas com o Brasil, é pelo poder da música mesmo. Tirando o futebol, que tem seus limites, o maior produto de exportação do Brasil ainda é a música. Quando se pensa no Brasil, a primeira coisa que vem à cabeça, em termos de cultura, é a música. Estou tentando incentivar caminhos que saiam desses nicho, pois a música brasileira não impõe barreiras. Vale lembrar que Villa Lobos e Tom Jobim coexistiram, apesar da diferença de idade. Tudo o que Villa Lobos fez de melhor foi influenciado diretamente pela música popular. E Tom e Vinícius adoravam Villa Lobos.
Novos projetos?
M.Z. - Estou compondo uma peça sobre capoeira de 35 minutos para a companhia de dança Dance Brazil, do coreógrafo Jelon Viera. A maior parte dos bailarinos são baianos, misturam dança moderna com folclórica. Eles estarão fechando a temporada do Joyce Theatre, um consagrado teatro de dança em Nova York, onde se apresentam os mais renomados nomes da dança moderna, como Momix ou David Parsons. Criar para o cinema e para a dança é fascinante. A não percepção da música dá ao compositor uma influência subversiva na emoção do espectador. Acho isso muito tentador.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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