Sue Shellenbarger
01.julho.1999
Entre o dever e a culpa
Como conciliar trabalho e vida familiar? Ouça o que tem a dizer Sue Shellenbarger, a jornalista do Wall Street Journal que há oito anos escreve sobre o assunto para quase 1,8 milhão de americanos
Por Tania Menai
A americana Sue Shellenbarger vale por quatro: é mãe, jornalista, dona de casa e ainda autora de uma coluna de enorme sucesso no Wall Street Journal, o mais importante jornal de negócios e finanças dos Estados Unidos. Publicada às quartas-feiras desde 1991, a coluna se chama Work & Family, também está na Internet (careers.wsj.com) e é lida por cerca de 1,8 milhão de pessoas, que buscam ali orientação e informações sobre a relação entre trabalho e família. É um tema mais do que relevante que, de uma forma ou de outra, diz respeito a todo mundo. Em qualquer lugar do planeta, todo santo dia operários e executivos se viram pelo avesso para tentar equilibrar as horas dedicadas ao escritório e o tempo passado ao lado do marido, da mulher e dos filhos. Nisso Sue é uma especialista - a maior parte do que ela escreve não é fruto de teorias, mas da prática, do treino cotidiano na vida real.
Na década de 80, Sue era chefe da redação da sucursal do Wall Street Journal em Chicago e, ao mesmo tempo, cuidava dos três filhos do primeiro casamento do seu marido. Pouco depois, o que já era difícil complicou-se mais ainda - em 1987, nasceu seu primeiro bebê. Três anos mais tarde veio o segundo. Antes que ficasse louca entre fraldas e o escritório, Sue decidiu entregar seu posto e trabalhar apenas em casa. Mas fazendo o quê? Pensou um pouco e deduziu que deveria haver uma multidão de gente vivendo as mesmas questões e enfrentando os mesmos problemas que ela. Foi aí que nasceu a coluna Work & Family. Desde a estréia, foi um sucesso. Em razão disso, a coluna ganhou um espaço privilegiado no caderno Market Place, um dos mais importantes do jornal. No mês passado, o trabalho de Sue virou livro. Ela acaba de lançar, a pedido dos leitores, uma coletânea de 100 colunas escritas entre 1994 e 1998, e batizada, como não podia deixar de ser, Work & Family (Ballantine Books, 321 páginas, sem tradução para o português). De sua casa, ou home office, em Oregon, na costa leste dos Estados Unidos, Sue deu esta entrevista a VOCÊ s.a.:
Há 200 anos pelo menos, desde a Revolução Industrial, os homens têm problemas para conciliar trabalho e família. Não existe uma profissão em que isso seja mais fácil?
Na verdade, hoje, são raras as profissões que não combinam com família. Cada vez mais, vejo profissionais de todas as áreas conciliando vida familiar com trabalho - até médicos, com seus plantões malucos, conseguem dar um jeito. Mas também é verdade que, se você é piloto de avião ou trabalha em plataforma petrolífera, a família acaba ficando em segundo plano. A mesma coisa ocorre com presidentes de grandes empresas.
A eterna questão: como é que se concilia trabalho e família?
O primeiro passo é estabelecer prioridades. Se a família é importante - e a família é sempre importante -, é preciso disciplina para evitar que a carga de trabalho se sobreponha à vida pessoal. Você deve dirigir o seu tempo para as coisas mais fundamentais. O problema é que a maioria das pessoas age sem disciplina, apenas navegando na corrente. Se os pais não tomarem cuidado, podem tornar a vida dos filhos um pesadelo. Não adianta estar em casa falando pelo telefone em vez de assistir aos meninos jogando futebol. Também não serve para nada mandar e-mails de desculpas enquanto você deveria estar à mesa com a família. Mas, para que isso não aconteça, é preciso disciplina.
Como eu posso estar com meus filhos se o chefe não pára de me arrumar pilhas de trabalhos urgentes? Falta tempo e sobra estresse...
De fato, o estresse vai do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Não tem jeito de ser diferente. Um estudo recente mostra que 95% dos trabalhadores americanos querem e não conseguem passar mais tempo com a família. Até por isso, 88% dizem estar estressados com o trabalho. Ou seja, podemos dizer que nove em cada dez funcionários não estão felizes com a maneira como lida com o trabalho e a família. Como resolver isso? Eles mesmos respondem: 92% querem mais flexibilidade nos horários. Mas, enquanto a situação não muda, uma das conseqüências desse fenômeno é que o número de faltas no trabalho está aumentando. Por um caminho torto, isso mostra que as pessoas estão valorizando mais o tempo pessoal que o profissional.
Cabular o trabalho não parece ser uma boa solução. O que as empresas podem fazer para melhorar a vida de seus funcionários?
Nos Estados Unidos, usamos a expressão family friendly para designar as empresas que se preocupam com as relações familiares de seus empregados. Elas criam condições para que uma coisa interfira o mínimo possível na outra. Oferecem horário flexível, salas de amamentação, creches e por aí afora. Os funcionários ficam mais felizes, não pensam em mudar de emprego e rendem mais. É comprovado que as empresas family friendly recebem muito mais candidatos do que as empresas tradicionais.
O que fazem exatamente as melhores empresas family friendly?
Essas empresas, como a Hewlett-Packard e o banco First Tenessee, têm bons programas para crianças e idosos. Há também seminários sobre qualidade de vida. Mas a parte mais importante diz respeito à flexibilidade de horários - por isso entenda-se meio expediente, divisão de tarefas, trabalhar apenas em certos períodos semanais ou mesmo em casa. Note que são providências simples, que podem ser aplicadas por quaisquer empresas, de todos os setores, em todo lugar do mundo.
Isso já é uma tendência?
Sim, sem dúvida. A Silicon Graphics, por exemplo, tem centenas de empregados trabalhando em horários não convencionais. Na indústria farmacêutica Bristol-Myers Squibb, os horários alternativos mais do que dobraram nos últimos dois anos. Já a Hartford Financial, uma empresa de Connecticut, colocou um anúncio no jornal em busca de programadores e analistas de sistema que dizia assim: "Viva onde você está, trabalhe com a gente". Cada vez mais, as empresas estão fazendo da flexibilidade um tópico essencial para fechar contratos com seus empregadores.
Qual foi a empresa que mais a impressionou?
Nos Estados Unidos, há centenas de empresas family friendly e tenho receio de ser injusta. Mas um caso que merece nota é o da WRQ, uma grande empresa do setor de informática, que desenhou uma nova fábrica em Seattle de forma que todos os empregados tenham o máximo de conforto. Todos os ambientes têm vista para um lago e recebem luz natural. Os funcionários têm direito a serviço de massagem e hora da soneca.
É possível saber quais efeitos essas providências e a flexibilidade causam no dia-a-dia das empresas?
Sim. A American Management System, uma empresa de informação tecnológica, por exemplo, tem um turnover (ou rotatividade de funcionários) de apenas 16,5% - a média do ultracompetitivo setor de informática é de quase 30%. Isso ocorre porque a AMS respeita a vida pessoal de seus 8 000 funcionários. Flexibilidade faz parte da cultura dessa empresa. Isso funciona mesmo: há dois anos, várias vagas foram preenchidas por ex-funcionários que tinham saído e depois se arrependeram.
Se esses programas têm retornos tão bons, por que a maioria das empresas os ignora?
Porque tratar os funcionários com respeito não é uma coisa que nasce espontaneamente no dia-a-dia das empresas. Esse tipo de tratamento sempre é decorrência da visão que o alto escalão tem em relação à questão. Os melhores presidentes de empresa são aqueles que recorrem a esses programas para conquistar a lealdade, motivar e estimular a produtividade de suas equipes.
Isso quer dizer que a maioria das empresas não enxerga o óbvio, ou seja, que as pessoas não são máquinas de trabalhar?
De uma certa forma, é isso mesmo. Muitos presidentes de empresa ainda acham que produtividade e desempenho profissional são medidos apenas pela quantidade de horas que o funcionário passa no trabalho. Não perceberam que relacionamentos profissionais baseados em confiança e respeito rendem muito mais frutos - e aí se inclui também o respeito pelos valores e prioridades de cada um.
Como é que se pode respeitar na prática as pessoas, num caso em que os funcionários não respeitam o chefe?
Havia uma empresa na qual os empregados estavam insatisfeitos com suas relações com os chefes. Para não perder seus talentos, essa empresa deu mais privacidade e autonomia aos funcionários ao criar espaços individuais de trabalho. Passou também a contratar e treinar gerentes mais atenciosos. Com essas providências simples, o turnover despencou de 40% para 15%. O que se aprende disso é que comunicação é fundamental: conversar com um por um dos empregados para saber suas necessidades - e a necessidade de um é sempre diferente da necessidade do outro.
Uma situação cada vez mais comum é, num casal de executivos bem-sucedidos, um deles receber uma proposta para se mudar de cidade e ganhar muito mais. Como é que fica a família diante de desafios como esse?
É um grande problema. Laços familiares são a razão número 1 pela qual os profissionais recusam propostas de transferência. Se o seu marido ou sua mulher também têm um bom emprego, o seu filho está adaptado à escola e você tem pais idosos, para que mudar? Nos Estados Unidos, pelo menos, está ficando cada vez mais difícil para as empresas convencer os funcionários a aceitar mudanças como essas. Na tentativa de persuadi-los, estão surgindo pacotes de benefícios extremamente generosos.
Qual a melhor hora para um casal de jovens profissionais ter um filho?
Em primeiro lugar, é desejável que ambos tenham um bom emprego e uma situação econômica confortável. Em segundo, os dois devem estar preparados para assumir essa responsabilidade e devotar tempo e energia à criança. Por fim, um dos dois, pelo menos, deve se dedicar menos à carreira e mais ao filho nesse momento. Quando essas três coisas estão equilibradas e o bebê é saudável, não há como dar errado.
Bem, pela lógica, "um dos dois", nesse caso, significa a mulher, não é? Ou alguma coisa está mudando?
Quando o bebê nasce, é natural que a mulher dedique mais do seu tempo a ele. Mas o fato é que está havendo um "revival" paterno nos Estados Unidos. Muitos homens estão se dedicando em tempo integral às questões dos filhos. Estudos têm mostrado que eles passam mais tempo com as crianças do que há dez anos. Em relação ao que ocorria há 20 anos, eles ficam, em média, 1 hora a mais por dia cuidando de trabalhos domésticos. A tendência é que cada vez mais os homens cuidem do seu lar. Isso já é visto na geração dos que estão hoje na faixa dos 20 a 30 anos.
Em um de seus artigos, a senhora escreveu que um terço das crianças americanas com menos de 5 anos de idade é de filhos de pais que trabalham em turnos diferentes. Ou seja, só nos finais de semana elas vêem os dois juntos. Isso não é ruim para a criança?
Não tanto quanto parece. Esse tipo de situação ajuda a criança a ter uma relação mais forte com cada um dos pais. No passado, ela ficava só com a mãe e esperava o pai chegar. Agora, ela pode ter mais contato com os dois, mesmo que em horários diferentes. Isso pode ser bom se os pais forem bons. Mas, se eles chegam em casa caindo de cansaço e ignoram os filhos, estamos diante de uma tragédia.
Tudo bem, os bons pais fazem o melhor que podem. Mas e o que a gente faz com a culpa de não estar com os filhos como seria desejável?
Eis uma questão muito dolorosa. Mas se chega a ser ruim ou não para as crianças depende de cada uma delas. Muitas se beneficiam em ficar em casa sozinhas quando completam 10, 11 ou 12 anos. Elas usam esse tempo para desenvolver sua independência, sua autoconfiança. Mas na maior parte das vezes isso não é positivo. Ocorre que muitos pais não têm outra opção.
O que se pode esperar do futuro?
Nos Estados Unidos, hoje, uma em cada oito famílias tem pelo menos um adulto trabalhando em casa em tempo integral. Em decorrência da Internet, da redução do mercado de trabalho e da mudança de valores empresariais, daqui a três anos esse número será de uma em cada cinco famílias. Além de eliminar o tempo usado na locomoção e os gastos com escritório, trabalhar em casa aumenta a produtividade. A empresa ganha com isso e a família também.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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