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Paulo Szot
05.abril.2010
"Seriamente Charmoso"
Tania Menai, de Nova York
São onze e meia da noite em Manhattan. O Central Park está silencioso, parcialmente iluminado. Algumas charretes levam turistas, dividindo a pista de asfalto com poucos esportistas. Entre eles, o barítono paulista Paulo Szot (pronuncia-se “chot”), 40 anos, que costuma dar a sua corridinha diária de 40 minutos a esta hora. “Esta é a melhor forma de baixar a adrenalina depois do espetáculo”, diz ele. Por espetáculo entende-se a remontagem do musical “South Pacific”, no qual ele protagoniza o francês Emile de Becque. Indicado, em 2008, para onze categorias do TONY Awards, o equivalente ao Oscar da Broadway, South Pacific ganhou sete, incluindo o de melhor protagonista de musical, algo inimaginável para Paulo, dado que nesta indústria quem não é americano, praticamente não tem vez. Ele é o único estrangeiro da Broadway; até 2011, este musical que tornou-se uma âncora para Paulo em Nova York. Entre uma temporada de ópera e outra, é neste palco que ele pisa.
Em março deste ano, os nova-iorquinos reafirmaram sua paixão pelo seu mais novo morador, lotando as seis apresentações da ópera russa “O Nariz”, uma superprodução que marcou sua estréia no Metropolitan Opera (que fica no mesmo complexo onde acontece o South Pacific, no Lincoln Center) na qual ele protagoniza vivendo o oficial Ivan Yakovlevich, num texto orginal de um conto de dez páginas de Nikolai Gogol, escrito entre 1835 e 1836. “A música é fantástica e a encenação uma loucura. A regência de Valery Gergiev e a direção de William Kentrigde foram inovadoras e originais. O resultado foi muito interessante”, orgulha-se Szot, que cantou em russo. E a agenda não pára por ai. Os meses seguintes incluem, alem de algumas semanas de South Pacific, uma apresentação no Carnegie Hall com o New York Pops, uma montagem de Carmen em Valência, na Espanha (sob a regência de Zubin Metha) e outra de Don Giovanni, em Dallas. No segundo semestre tem mais: seu segundo show da Broadway, desta vez vivendo o papel de Ivan, no musical “Mulheres a beira de um ataque de nervos”, de Pedro Almodóvar. Mais? “Sim: em 2011 estréio na Ópera Garnier de Paris em “Cosi fan Tutte”, em seguida retorno ao Metropolitan Opera no papel de Escamillo, em “Carmen” – e depois parto em viagem com South Pacific para Londres e Austrália”, conta.
Depois de dedicar-se12 anos à ópera, tendo atuado em 60 produções mundialmente, South Pacific é a sua primeira experiência em musical. Paulo chegou em Nova York em janeiro de 2008, o musical estreiou em abril, e a premiação aconteceu em junho. Rápido assim. Ao receber o troféu das mãos de ninguém menos que Liza Minelli, Paulo agradeceu à família, à equipe e desejou “Feliz Aniversário”, em bom português, à sua mãe. Ela lhe assistia desde Ribeirão Pires, cidade paulista para onde imigrou da Polônia, casou com um também polonês e teve cinco filhos. Paulo é o caçula. “Nunca pensei em ganhar este prêmio, minha vontade era apenas de fazer um bom trabalho”, diz ele durante um jantar numa segunda-feria, seu único dia de folga quando atua na Broadway. “E por mais que você faça a linha ‘estou calmo’, o coração vem na garganta durante as duas horas da premiação”, confessa ele, acrescentando que depois desse prêmio sua vida, de fato, mudou. ”Nunca tinha tido um reconhecimento dessa dimensão; esta é uma vitória para os artistas brasileiros.É muito bom poder levar o nome do Brasil para os palcos internacionais”, comemora.
Escrito pela lendária, e já falecida, dupla americana Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, South Pacific ficou em cartaz entre 1949 e 1954, uma época de ouro na Broadway, e um momento delicado num mundo pós-guerra. O musical, que para ser acompanhado exige total fluência em inglês, foi baseado no livro Tales of the South Pacific, ganhador do prêmio Pulizter em 1948. A história conta o amor entre o francês Emile de Becque e a americana Nellie Forbush (vivida pela magnifica e divertida Kelly O’Hara) numa ilha do Sul do Pacífico na época da Segunda Guerra Mundial. Nellie é enfermeira do exército americano e Emille é fugido da França por ter assassinado um homem. A relação é sacudida quando Nellie descobre que Emile, pai de um casal de crianças, é viúvo de uma mulher negra, algo inconcebível para a enfermeira, nascida em Little Rock, no Arkansas, região marcada por conflitos raciais. Na década de 40, racismo era um assunto intocável, e South Pacific foi revoluncionário ao levar o tema para a Broadway. Inclusive, há uma música que diz “não nascemos assim, isso acontece depois que nascemos.” “Esta canção é a essência do musical. Mas na versão original ela foi cortada, por ser muito direta”, conta Paulo, ressaltando que o racismo é muito mais forte nos Estados Unidos do que no Brasil.
Em qualquer um dos oito shows semanais, o teatro lota, mesmo com os ingressos na faixa de 120 dólares. A maior parte do público tem cabelo branco e não se contenta em ver o show apenas uma vez. Eles esperam por Paulo na saída para entregar cartas, pedir autógrafos e dizer o número de vezes em que já estiveram lá. “Eles ainda mencionam as datas futuras, perguntando se estarei cantando naquele dia”, diz ele. Numa sessão de matinê, uma das principais patronas da ópera local e mundial assistia o show pela quinta vez num período de três meses, com o mesmo entusiasmo de quando viu a primeira versão do musical, há quase 60 anos. Já crítico do New York Times confessa em seu texto que tentou, mas não conseguiu achar defeitos na produção; e ainda despejou elogios ao Paulo, dizendo que ele é “seriamente charmoso”. Uma das grandes vantagens desta produção é o próprio teatro, que fica no complexo do Lincoln Center, um lugar de muito mais prestígio e elegância do que os demais teatros da Broadway, concentrados no centro da cidade. Além de intimista, com a arquitetura que lembra um anfi-teatro, a produção dispõem de uma tecnologia-de- ponta que usa ondas de som: o público escuta as vozes direto da boca dos cantores, em vez de vindas de caixas de som. “Meu microfone fica logo acima da testa, ninguém vê”, diz Paulo, que tem de pintar as costeletas de branco, para interpretar Emile, de 44 anos. Este papel foi criado exclusivamente para um cantor de ópera e, de preferência, estrangeiro. Na primeira versão, ele foi vivido pelo italiano Ezio Pinza. “Foi muito bacana o Rodgers e Hammerstein terem introduzido um cantor de ópera num musical. Isso acaba com a imagem distante que se tem de cantores de ópera, dando ao público a oportunidade de ver algo novo – o canal de comunicação é um pouquinho diferente, mas pertence à mesma família. Isso derruba o preconceito entre os gêneros”, nota Paulo, que nunca chegou a ver cenas do South Pacific orginal, mas ouviu trechos.
Esta nova experiência virou a vida deste paulista do lado avesso. Além de três contratos de ópera cancelados, para acomodar South Pacific (algo que poderia pesar negativamente em sua carreira), a rotina também mudou. Para se ter uma idéia, as produções de ópera lhe exigiam uma média de três apresentações por semana, com intervalo de dois dias entre elas. Em Nova York, os ensaios levavam 10 horas por dia e hoje Paulo se apresenta oito vezes por semana, de terça à domingo. Além disso, por dois dias, ele se apresenta na matinê e no show noturno, às 3 da tarde e às 8 da noite. Nestes dois dias para se recompor entre um show e outro, depois do primeiro show ele volta para seu apartamento (a poucas quadras do teatro), almoça e dorme por duas horas. “Acordo como se fosse um novo dia”, diz ele. “Essa técnica é essencial; descobri isso ao longo dos ensaios,” diz ele, acrescentando que levanta todos dias ao meio-dia, e vai dormir às três da manhã. Tirando algumas idas ao cinema no dia de folga, é essa sua rotina em Nova York. E nada mais. “Para manter a voz é importante excercício físico, muitas horas de sono, e além dos cuidados básico, como não fumar, não beber, e não falar demais. Como exercitamos a voz todos os dias no espetáculo, não sinto necessidade de fazer nenhum outro exercício vocal”, conta ele.
Contudo, o desafio maior foi este: em South Pacific, Paulo também tem de atuar, algo inédito em sua carreira. Seu personagem fala inglês com um leve sotaque francês. “Quando cheguei com meus textos memorizados logo no primeiro ensaio, como fazemos na ópera, achei que seria tranquilo”, conta. “Nos primeiros ensaios, onde líamos o texto, tudo correu bem. Mas quando passamos a atuar sem ler, meus pesadelos começaram”, lembra. “Cantores de ópera só trabalham a voz. Não temos idéia como se movimentar no palco. Não há aula de atuação, pelo incrível que pareça; este é o trabalho particular de cada um”, diz ele, confessando que perdeu inúmeras noites de sono pensando nas cenas faladas. “Imagine, eu estava na Broadway cercado de atores que tinham um repertório de intenções e expressões para dar e vender - e eu ali com minha interpretação dramático-operística tentando me adaptar à essa nova linguagem - foi frustrante”, completa. “Tive vontade de pegar o primeiro avião de volta para casa e retornar à ópera. Mas não foi isso que aconteceu.” Para artistas estrangeiros a diferença entre a Broadway e a ópera é fundamental. Na Broadway, os atores fazem parte do Actor’s Equity Association, uma associação que protege o mercardo nacional. “Só fui autorizado porque meu papel é designado para um estrangeiro e para um cantor de ópera. Se meu papel fosse no musical Violonista no Telhado, por exemplo, a associação provavelmente negaria a minha entrada”, explica. “Já os artistas de ópera fazem parte da American Guild of Musical Artists, ou AGMA, que é aberta para cantores internacionais. As pessoas vem e vão; é muito comum.”
Para Paulo, a música veio de casa. Seus pais são amantes de música, dança e artes plásticas. Ele emigraram ao Brasil após a Segunda Guerra Mundial. “Minha mãe pintava porcelana na Nadir Figueiredo e meu pai fazia “esculturas”, ou seja, montagens em metalurgia”, brinca. “Eles sempre foram secretamente artistas obrigados a trabalhar nos empregos que lhe ofereciam.” Ainda assim, o casal criou os cinco filhos, três meninos e duas meninas, em meio a instrumentos e corais. Apenas o mais velho não seguiu carreira artística. “Todos nós tivemos estudos musicais; nos finais de semana tocávamos e cantávamos juntos. Meu pai criou um grupo folclórico polonês chamado Wiosna onde tivemos a oportunidade de aprender as musicas e danças polonesas, e asssim conhecer mais profundamente a cultura do país de origem dos meus pais”, lembra ele. “Minha mãe conta que eu escutava discos na minha vitrola cor de abóbora. Hoje em dias os adolescentes nem sabem o que é isso... eu adorava minha vitrola portátil. Levava para todo canto. Ouvia estórinhas dos disquinhos coloridos e todo tipo de discos que tínhamos em casa”, revela ele, que sempre sorri ao falar da família. Mas quando pequeno, ópera lhe assustava. Ele gostava mesmo era de musicais. Aos doze anos, começou a estudar balé e violino, mas escondia este talento dos amigos da escola, para que eles não reprimissem as coisas que eu gostava. Paulo cresceu cantando em coral em São Paulo e em Ribeirão Pires, mas na época não desconfiava que tinha um “material total”, como ele fala – ou seja, um vozerão. Aos18 anos ele foi à Polônia estudar o idioma e dança, mas teve um acidente no joelho. Como ele também fazia parte do coral da universidade, sua voz não passou despercebida pelo regente, que lhe incentivou a estudar ópera. “Este nunca foi meu sonho, mas fui encaminhado para esta realidade”, diz Paulo, acrescentando que sempre teve bons professores.
Paulo, que fala quatro idiomas com fluência, acredita que hoje, a carreira de músico no Brasil é melhor do que em sua época. Ainda assim, cantores de ópera sofrem com a falta de organização e planejamento dos teatros, exceto a OESP, que foi fundada por John Neschling, que a dirigiu até 2008 . Essa continuidade dá qualidade ao trabalho, ao contrário de outros teatros que mudam a direção a cada troca de governo. Outro ponto positivo, segundo ele, foi o concerto dos Três Tenores, televisionado para o mundo todo. “É inegável que foi ali que muita gente viu um cantor de ópera pela primeira vez - e isso foi ótimo”, diz ele que ignora os apreciadores puristas de ópera e defende a boa música, seja ela qual for. “Esta distância que o público tem da ópera é em parte culpa dos próprios cantores que agem como pessoas imaculadas, intocáveis”, diz. “Até mesmo meus colegas da Broadway me tratavam assim no começo dos ensaios – depois eles viram que isso não faz sentido”, diz.
Em casa, Paulo escuta de tudo – de Chopin, Cole Porter e Mercedez Sosa a Elis, Chico e Betânia. Mas, por enquanto, o Brasil fica só no iPod. Quando ele dedicava-se apenas às produções de ópera, ele visitava Ribeirão Pires entre uma ou outra produção. Mas South Pacific limitou estas viagens. “Meus pais são os maiores incentivadores da minha carreira”, sorri, acrescentando que a carreira na ópera passou a ser intercalada com a Broadway. Ele lembra que quando ainda titubiava entre aceitar ou não o papel em South Pafic – apesar de ter se destacado de longe durante as audições - um dos diretores lhe prometeu que teatro no mundo jamais lhe trataria tão bem quando este. Hoje, Paulo concorda. “Eles me fazem sentir muito bem. Isso é essencial para o artista, um ser extremamente sensível”, explica. “Arte é sensibilidade. Se você não está bem, isso é projetado no palco. Então ao criar um ambiente bacana ao redor, os artistas pode dar o seu melhor. E isso acontece aqui”, conclui.
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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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