Bactérias em pânico
19.agosto.2001
Dois antibióticos lançados no Brasil dão um xeque-mate nas bactérias mutantes e resistentes. A medicina passou à frente de novo na luta contra as infecções
Por Ivonete D. Lucírio, com Tânia Menai, de Nova York, infográficos Luiz Iria
Com seus átomos dispostos em uma combinação inédita, projetada por computador, a molécula de linezolida é uma peça absolutamente única na Química. Totalmente sintética e jamais vista por um microrganismo, sua aparição surpreende as bactérias que invade, destruindo-as sem que possam se defender - com a precisão de um míssil inteligente. Seu segredo são três engenhosos anéis de carbono, guarnecidos de átomos de nitrogênio, oxigênio e fósforo. Eles são a chave que bloqueia o sistema reprodutivo dos bacilos do tipo gram-positivo - aqueles que têm uma grossa membrana celular, rica em açúcar. Entre eles estão os perigosos estreptococos, os estafilococos e os enterococos, cujas quadrilhas de micróbios são impedidas de se multiplicar. Infelizmente, contra as bactérias gram-negativas - as que possuem várias membranas, ricas em gordura - a nova droga é inócua.
A programação para matar gram-positivas transformou a linezolida no princípio ativo do antibiótico mais eficiente que existe, o Zyvox, lançado em março no Brasil, pela empresa americana Pharmacy & Upjohn. Trata-se de uma arma nova, com a qual os médicos nocauteiam bactérias mutantes, que adquiriram resistência aos remédios disponíveis contra infecções e flagelam os hospitais.
Presente argentino
O artificioso Zyvox, entretanto, já ganhou um bom aliado, o naturalíssimo Synercid, que também chegou às farmácias brasileiras este ano, lançado pela empresa francesa Rhône-Poulenc, hoje Aventis. Esse mata-micróbio europeu, ao contrário do seu similar americano, não foi sintetizado em laboratório. Trata-se de um presente da natureza - na verdade, um presente argentino.
Seus dois princípios ativos, a quinuspristina e a dalfopristina, foram achados no fungo Streptomyces pristinaespiralis, na Patagônia. Não se sabe exatamente por que essa espécie fabrica as duas moléculas, mas assim que as encontraram, em uma amostra de solo colhida a esmo, depois de procurar princípios ativos poderosos no mundo inteiro, os pesquisadores da Aventis perceberam que tinham tirado a sorte grande.
Alguns brasileiros já testaram a superarma. Em 1998, uma paciente internada no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, livrou-se da letal bactéria Staphylococcus aureus, causadora da osteomielite, com a ajuda do Synercid. Ele ainda estava em estudo na época, mas o médico Isídio Calish resolveu experimentar, porque o micróbio já havia derrotado a vancomicina, a melhor arma disponível àquela época.
"Sem o Synercid a paciente não teria melhorado ", afirma Calish.
A aliança das duas estratégias - a esperteza dos chips americanos e a habilidade européia de usar a riqueza natural dos organismos - dá mais proteção contra os micróbios. Mas os bacilos gram-negativos, incólumes às novas drogas, continuam a existir. Além disso, as malditas bactérias não param nunca de se transformar e renovar suas ameaças.
Quando os cientistas começam a desenvolver um novo antibiótico, primeiro estudam minuciosamente o comportamento das bactérias que querem destruir. Só depois que seus pontos fracos são identificados é que se pode projetar armadilhas para neutralizá-las. A pesquisa é complexa e demorada. Mesmo sabendo onde atacar, é preciso encontrar um veneno apropriado entre milhares de possibilidades.
No caso do Zyvox, o computador foi programado para analisar cerca de 100.000 arranjos entre átomos de centenas moléculas. Antes de tudo, os cientistas gravaram na memória da máquina todas as informações disponíveis sobre a biologia dos micróbios. Com isso, o computador foi capaz de "imaginar" substâncias inexistentes, teoricamente prejudiciais aos microrganismos. Depois, as moléculas promissoras foram peneiradas e as que não funcionavam como se pretendia, descartadas. Graças à propriedade dos chips de oferecer simulações virtuais de reações químicas, muitas vezes não foi necessário checar se a toxina projetada artificialmente tinha mesmo o efeito desejado. Esse tempo ganho pelos computadores foi precioso.
"De cada 100 moléculas candidatas a antibiótico, apenas uma acaba se mostrando realmente eficiente e segura", explica o médico Maurício Mônaco, da Pharmacia & Upjohn no Brasil. Para colocar o produto no mercado, as empresas não gastam menos de meio bilhão de dólares.
Remédio natural
A estimativa vale também para os remédios encontrados semiprontos na natureza, como aconteceu com o Synercid. Ele faz parte de um grupo de substâncias, denominadas estreptogaminas, que já haviam originado um mata-micróbio - a pristimacina, lançada na França na década de 60. Mas a droga só fazia sucesso como estimulante de crescimento de vacas e galinhas: misturada à comida, ajudava os animais a engordar. Os cientistas não sabem até hoje por quê.
O fato é que a pristimacina nunca teve a ação que se esperava dela como remédio. Assim, o trabalho dos pesquisadores da Aventis foi o de aprimorar outras estreptogaminas em laboratório. Após dez anos de tentativas, eles descobriram que essas substâncias eram muitos mais letais para os micróbios quando aplicadas em duplas aos organismos doentes. O Synercid nasceu de uma aliança entre a quinuspristina e a dalfopristina. Juntas, elas produzem um efeito dezesseis vezes maior do que cada uma delas sozinha.
Batalha com um inimigo invencível
Apesar das vitórias, o inimigo renasce. É que os micróbios procriam com enorme velocidade e cada vez que um se divide em dois, duplicando seus genes, surge a chance de uma mutação que os torna resistentes aos remédios. "Há bactérias que se multiplicam de 10 em 10 minutos", diz o infectologista Jacyr Pasternak, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. "Elas têm um enorme potencial de mutação genética."
Ninguém duvida. As drogas recém- lançadas também serão ultrapassadas. A tarefa é de Sísifo, o personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma pedra montanha acima que à noite deslizava montanha abaixo. Por isso, os pesquisadores propõem remédios novos sem parar.
Saber usar
Entre os que vêm aí há um novo tipo de glicopeptídeo, o mesmo grupo de substâncias da vancomicina. Ainda sem nome, ele poderá ser lançado pelo laboratório Eli-Lilly dentro de um ano e meio, como alternativa para o fracasso dessa. "Fizemos uma modificação na molécula para facilitar sua entrada na membrana bacteriana", explica André Feher, diretor-médico do laboratório no Brasil. Parte dos testes em gente está sendo realizada em instituições brasileiras, em São Paulo.
Mas, enquanto os novos remédios não chegam, deve-se fazer o melhor uso possível dos que estão à mão. Na verdade, muitos são muito mal administrados. Para ter uma idéia, o Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC) nos Estados Unidos estima que um terço das prescrições de antibióticos naquele país é indevido. E o pior de tudo é que, quanto mais se utiliza uma droga, maior é a probabilidade de surgir uma bactéria imune a ela. O uso excessivo acaba fortalecendo o inimigo. Se os antibióticos não forem administrados com sabedoria, nem a astúcia dos computadores nem a riqueza natural do organismo poderão fornecer armas eficientes para manter as infecções longe.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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