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Tempos Modernos?
15.dezembro.2005
O que acontece quando uma pessoa que vive à caça de informação em tempo real, cidadã de Nova York, se vê completamente desconectada, presa entre dunas do maior deserto do mundo?
Tania Menai, dunas de Erg Chebbi no Sahara, Marrocos
Não sei dizer que horas eram quando Javi deitou-se ao meu lado, de barriga para cima, naquela imensa duna de areia. Olhou para o teto de estrelas que cobre o deserto e, com seu doce sotaque madrilenho, entoou uma canção dos meus conterrâneos Tom e Vinícius: “tristeza não tem fim, felicidade sim”. Será que ainda era noite? Ou o dia seguinte já tinha chegado? Será que era domingo? Ou seria terça? Será que estávamos a 15 metros do chão? Ou seriam 100? O Sahara talvez seja como a tal tristeza: aqui não há começo, não há fim. Não se sabe onde nasce o céu ou onde morre o horizonte. E para mim, que moro em Manhattan, aquela ilha apertada, com começo, meio, fim e gente, muita gente, passar uma noite aqui, nesta imensidão, deve ser como pousar na Lua. No deserto, quem manda é o silêncio. Ele nos cala. E é ele que nos faz sentir o quão longe estamos de tudo que conhecemos, e o quão perto estamos do que somos. “A Lua deve ser assim”, concordou Javi, autor das fotos que acompanham esta leitura.
Sahara, em árabe, quer dizer deserto. Aqui, sente-se a vida mais longa, estirada – e as noites mais curtas. Imponentes e majestais, as dunas nos intimidam. São gigantes de areia cujo tamanho não conseguimos decifrar. Dizem, porém, que algumas chegam a 150 metros de altura. Em Nova York, a cidade mais populosa dos Estados Unidos, são os prédios que nos fazem sentir pequenos. Lá, as palavras “vazio”, “silencioso” ou “isolado” não têm vez. São termos imediatamente invadidos por sirenes, buzinas e idiomas. Não há um café despido de som ambiente, seja jazz, blues, hip-hop ou bossa-nova. Não há um táxi em que não haja uma rádio haitiana nas alturas ou um paquistanês conversando pelo celular com um cidadão em Karachi. É uma cidade onde o silêncio assusta; é como se algo estivesse errado. Por isso, ele é sempre interrompido pelo tal do iPod no ouvido, seja no vagão do metrô, ou numa caminhada pelo Central Park. Não há cidade em que a música portátil isole mais as pessoas. Mas o isolamento, neste caso, tem mais a ver com solidão do que introspecção. Tá certo, é gostoso ouvir Caetano em pleno caos da Oitava Avenida. E confesso ter trazido o meu iPod-mini, verde, para o deserto. Mas ele está na tenda, lá embaixo, intacto, dentro da bolsa. Em momento algum senti sua falta. Aqui, o silêncio é o nosso melhor amigo.
Esta vastidão faz parte de poemas, lendas e batalhas dos touaregs, povos tribais que até hoje fazem daqui a sua terra. É impressionante como eles sabem onde é norte, sul, e como calculam as distâncias se guiando pelas estrelas. É como se, para eles, tudo fosse sinalizado, como se houvessem placas ou ruas. Os nove milhões de quilômetros quadrados do Sahara acupam quase toda a África do Norte – este é o maior deserto do mundo. Estamos no Marrocos, quase na fronteira com a Argélia - quem habita essas bandas há cinco mil anos são os berbères. Os árabes só chegaram neste país no final do século 17, depois de se entranharem pelo Oriente Médio e pelo norte africano em nome do Islã. Os berbères são nômades, por isso falam trocentos idiomas – não têm documento, vivem tanto nas montanhas quanto no deserto. Muitos deles ainda usam o escambo como forma de comércio. São pastores de ovelhas, tapeceiros, artesãos, e, depois do contato com árabes, muçulmanos. Suas túnicas azuis, da cor do céu, como explicam eles, lhes renderam o apelido em francês de “hommes bleus”, ou homens azuis.
Um deles é Hamid, de 28 anos, nosso guia e chamelier, a pessoa que cuida dos dromedários. Sim, chegamos aqui depois de uma jornada de duas horas balançando sobre estes animais. Sentado ao nosso lado, ele conta que não usa relógio, não vê TV, tampouco lê jornais. Internet nem pensar. “Mas você não sabe nada o que acontece pelo mundo?”, pergunta Javi. “Não”, responde Hamid. “Nem sobre o Onze de Setembro?” “Pouco”, responde o berber. “E o Onze de Março, em Madrid?” “Nada, não sei de nada. E não sinto falta”, responde ele, num espanhol impecável. Engraçado, dias terríveis como aqueles são lembradas por suas datas. Por sinal, falando em datas, nesta noite, aqui no deserto, celebro dez anos do dia em que cheguei em Nova York. Dez anos. O tempo passou e eu nem vi.
O sonho de Hamid é comprar um dromedário. Os que ele cuida pertencem a uma família rica, dona de um hotel em Merzouga, vilarejo que beira o deserto. “Quanto custa um?” “Muito, muito caro”, respondeu. “Mas quanto?”, insisti. “Dez mil dirhams”. “Mil dólares”, comparei. Mil dólares....isso não paga o aluguel mensal de um estúdio claustrofóbico em Manhattan. E não chega a metade do preço da câmera fotográfica que Javi guarda na tenda. Quanto tempo Hamid teria de trabalhar para conseguir comprar um dromedário? Não sei. Mas talvez ele não calcule esta conquista pela moeda “tempo”. Aqui não se ganha por hora, nada “é para ontem”, deadline é uma palavra desconehcida. “Se Alá quiser, eu chego lá”, diz o chamelier. Perguntei a ele se um dromedário não tiraria sua liberdade de ir e vir - afinal, ele passaria a ter que cuidar de um animal. Ele disse que não. Pensei em Nova York, uma das únicas cidades do mundo onde o carro tira a sua liberdade. Quem tem um, vira escravo. O negócio naquela cidade é andar a pé, de metrô – e, se muito, de táxi. Hamid tira seu longo, longuíssimo, turbante preto para nos cobrir, nos protegendo da leve brisa que acaricía o deserto. “Não tenho medo de vendavais”, comenta. “Eles mudam o cenário, criam novas dunas, desfazem outras.”
Quem mora em Manhattan também não pode temer o vento. Um bom nova-iorquino sabe enfrentar o sopro gélido de janeiro; aquele que invade a alma, acaba com todos os guarda-chuvas e nos faz perguntar “que katzo estou fazendo aqui?” De certa forma, no inverno nos vestimos como os homens do deserto. Eles se cobrem todos, de dia ou de noite; e aqueles panos todos nada tem a ver com religião – estão ali para protegê-los do sol, que pode elevar a temperatura até 55º C, do frio da noite, e do vento que carrega areia. Em Nova York, no auge do frio, ninguém vê a cara de ninguém. Nos escondemos debaixo de luvas, gorros e cahecóis – eu mesma, me enrolo até o nariz, só deixo os olhos de fora. A única notícia boa é saber que a tortura tem fim. Nos países do hemisfério norte não se fala em meses, fala-se em estações. Esta é uma forma incrível de marcar o tempo. Como será no deserto? Sei lá. Só sei que aqui, tenho tempo para pensar no tempo – no que passou, no que virá. Em Nova York, não há tempo para isso. Lá, tempo é luxo. Segundos são cronometrados, atrasos são pecados. Neste mundo de ponteiros, resta se jogar no gramado do Sheep Meadow, no Central Park, colocar o iPod no ouvido, devorar o New York Times e observar um bebê engatinhar. Momentos que fazem, nem que por poucos segundos, o tempo parar. Talvez tenhamos mesmo que aprender com estes “homens azuis”, que parecem viver como aquele soneto do velho Vinícius: “Ando onde há espaço. Meu tempo é quando.”
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Para chegar lá – Auberge Kasbah Tombouctou – 212.55. 57.70.91
kasbahtombouctou@hotmail.com Merzouga - Marrocos
GPS N 31º . 07’ 663’ W 04. 00’ 802’
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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