Todas as reportagens
Outras reportagens de: piauí
- Caipirinha para PhDs
- Meu nome não é Fernééénda
- Lixo é relativo
- Cuidado com essa pia
|
Sincretismo Sexo-Religioso
01.outubro.2009
Tania Menai, de Nova York
A noite cai numa quente sexta-feira de agosto, em Manhattan. Na esquina da rua 28 com a Nona Avenida, no bairro Chelsea, o céu rosado compõem uma imagem surpreendentemente bucólica ao servir de fundo para a cruz que pousa sobre a esguia torre da pequena igreja dos Santos Apóstolos, uma pérola construída em 1848. Sem o alarde de sinos, os membros chegam calmamente para o serviço religioso que acontece semanalmente de sete `as oito e meia da noite. Vestidos sem luxo, uns de bermudas, outros de jeans, ao entrar na igreja todos se cumprimentam com um caloroso “shabat shalom”; mas não antes de os homens cobrirem suas cabeças com uma quipá. Trata-se da celebração do início do Shabat, o dia do descanso judaico, que se estende até o fim da tarde de sábado. Despida de imagens, o interior da igreja tem ares da Toscana: é toda branca, ostentada por arcos e colorida por belíssimos vitrais. No púlpito, uma bandeira americana, uma bandeira do Estado de Israel, uma bandeira gay – e uma rabina. Ao seu lado, uma mesa com dois pequenos portas-velas de vidro com chamas acesas: um representando a presença de Deus, comum a todas as sinagogas. E outro pintado com uma fita vermelha, o símbolo da luta contra a AIDS. `A sua frente, uma congregação judaica composta por gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. Mulheres e homens, jovens e idosos, negros e brancos; diversidade ímpar que reflete a cidade onde vivem.
Fundada em 1973, a Congregação Beth Simcha Torá (nome em hebraico, com a sigla CBST), é a mais famosa sinagoga do nicho nos Estados Unidos. Sediada nos fundos de um edifício no West Village, a congregação aluga o espaço da igreja `as sextas-feiras, por falta de espaço. Durante a semana, ambas congregações – sinagoga e igreja – doam diariamente 1.300 refeições para pessoas carentes de Nova York; é a maior iniciativa do gênero nos Estados Unidos. Naquela sexta-feira, cerca de 100 pessoas estavam presentes para o Shabat. “Damos boas-vindas ao grupo da nossa sinagoga-irmã de Chicago”, diz a rabina Sharon Kleinbaum, de 49 anos, a número 25 da lista dos 50 rabinos mais influentes do país, segundo a revista Newsweek. Além de cantar, rezar e preparar uma prédica que não deixa ninguém roncando, a rabina ainda mencionou um atentado anti-gay que ocorreu em Israel deixando um jovem tetraplégico, e perguntou se alguém tinha lido naquele dia a sessão de negócios do New York Times, que divulgava mais um capítulo tenebroso do episódio Bernie Madoff, financista judeu preso por surrupiar bilhões de dólares dos investidores de seu fundo. “Oy Gevalt!” (Ai, meu Deus!), disse ela, em iídishe, refletindo a vergonha que a comunidade judaica nova-iorquina tem do pilantra. Na platéia, um respeitoso silêncio e intensa participação. Via-se casais de mulheres, casais de homens, solteiros, solteiras e heterossexuais. Também via-se não-judeus acompanhando seus parceiros; um deles, um jovem oriental, com cabelos espetados verticalmente por gel. Seu par, um judeu americano, e consideravelmente mais velho, tentava equilibrar a quipá sobre o tal penteado. Enquanto isso, no canto, um homem de quarenta e poucos anos, camisa pólo preta, dava mamadeira para seu bebê, quietinho em seu no colo. Ao final de cada serviço, todos se juntam na própria igreja para fazer a reza do pão, do vinho e, claro, socializar. Neste momento, um senhor aproximou-se da rabina, contando que perdeu a mãe de 99 anos na semana anterior. E ganhou, imediatamente, um abraço.
Na sede da sinagoga, onde acontecem os serviços religiosos diários, nada lembra a Toscana. Sem janelas, o santuário, com cadeiras azuis, fica a metros de distância da máquina de Xerox e de café onde funciona o escritório. A rabina Sharon recebe a reportagem de Piauí ao interfone com um simpático “Oi, tudo bem?”, sua única frase em português. Um dos 800 membros de sua congregação é brasileiro: um transexual que, além de deixar de ser mulher para ser homem, tornou-se judeu, pondo fielmente em prática a sábia frase do escritor E.B. White que diz que em Nova York um indivíduo é capaz de se reinventar. Há também um grupo de lésbicas judias de São Paulo que sempre freqüenta a sinagoga quando estão em Manhattan. “Elas são médicas. Aqui, elas dizem suspirar aliviadas, alegando que, finalmente, podem ser o que realmente são”, conta Sharon, que é líder religiosa da CBST desde 1992. Quem entra na sala da rabina, é recebido com extrema alegria por seus dois cachorros. Ela tem cabelos curtos e se veste masculinamente, com camisa social e quipá. Usa óculos e dispensa brincos, pulseiras e maquiagem. Carismática e bem articulada, Sharon trabalha em um ambiente aconchegante, rodeada por livros em estantes e empilhados em cima da mesa. Perto do computador há pequenas bandeiras de arco-íris e a foto de sua família: sua companheira, Margaret Wenig, também rabina, e as duas filhas do casal, de 26 e 22 anos. A mais velha vive hoje em Londres, a mais nova em Buenos Aires.
Para abrigar a demanda dos serviços de Rosh Hashaná em Yom Kippur (principais feriados judaicos), a CBST aluga parte do pavilhão de feiras e eventos Jacobs Javits Center, onde comparecem de 3 a 4 mil pessoas, entre homossexuais e simpatizantes. Desde que se tornou rabina, há mais de duas décadas, Sharon celebra casamentos entre homossexuais, apesar de eles não serem reconhecidos legalmente pelo governo federal americano. Ela também serviu de grande conforto, no começo da década de 90, a muitos de seus membros levados pela AIDS. “A maior parte dos homens brancos que tem dinheiro e seguro saúde, não morrem mais da doença. Muitos na congregação estão vivendo cronicamente com o vírus, e eu os acompanho de perto”, conta. Há, no entanto, uma doença longe de ter cura: o preconceito. Basta a rabina ou a sinagoga aparecer na imprensa que judeus ortodoxos telefonam para atacá-la e até ameaçá-la de morte. “Já tivemos que chamar a policia”, conta. “Judeus em geral – não só os ortodoxos, mas os conservadores e os reformistas – ainda crescem escutando que um judeu não pode ser gay. E isso acontece em todos os cantos, em 2009, incluindo Nova York,” aponta a rabina.
O assunto foi tema do documentário “Trembling Before God” (Tremendo perante Deus), do americano Sandi Dubowski, assistido por 8 milhões de pessoas mundo afora, incluindo o Brasil. “Historicamente, o judaísmo ensinou que ‘Deus é masculino e o povo judeu é feminino’. Ou seja, o masculino é superior. Aqui, confrontamos esta idéia, defendendo a igualdade”, diz Sharon. “Acreditamos que não importa quem você ama, mas como você ama. O que vale é a qualidade do seu relacionamento”, completa. Sharon explica que a necessidade de judeus gays terem uma congregação para si varia ao longo da história. “Em 1973, quando esta sinagoga foi criada, nenhuma sinagoga do mundo dizia alguma coisa positiva sobre os gays. Nem em Nova York, nem em São Paulo, nem em Tel Aviv. Nenhum rabino defendia a causa. Esta era a razão para esta sinagoga existir”, diz a rabina. “Hoje, no entanto, continuamos relevantes por razões positivas: temos o que ensinar aos de fora sobre espiritualidade, sobre Deus, sobre o que é significativo na vida de todos”. Sim, os tempos mudaram: a segunda rabina do CBTS, Ayelet Cohen, não é gay, assim como vários membros do conselho e mais de 15% da congregação. Mas resta a pergunta de um milhão de dólares: como ficam as mãe judias, loucas para serem avós, se seus filhos são gays? “No ano passado, abençoei 100 crianças na celebração de Rosh Hashaná”, orgulha-se. “Fertilização in vitro, inseminação alternativa, barriga de aluguel. Temos agora um novo capítulo”, conclui a rabina.
# # #
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
---
voltar |



|