David Neeleman
15.maio.2002
"Voar bem e barato"
Em meio à crise mundial da aviação, o brasileiro que dirige a americana JetBlue tem um modelo vitorioso que combina tarifa baixa e bons serviços
Tania Menai, de Nova York
A indústria de aviação é um negócio cheio de problemas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, só no ano passado, o setor perdeu 7,2 bilhões de dólares, estacionou 10% de suas naves e demitiu dezenas de milhares de funcionários. O céu parece estar azul para pouquíssimas empresas, entre elas a JetBlue Airways, com sede no aeroporto JFK, em Nova York, que decolou seu primeiro avião em fevereiro de 2000. Hoje a companhia tem 27 jatos Airbus A320, todos idênticos, e um lema: cobrar sempre a metade do que cobram as concorrentes. Uma passagem de ida de Nova York a Los Angeles custa 194 dólares na JetBlue. Uma busca no site Expedia, o mais utilizado pelos viajantes aéreos nos Estados Unidos, revelou que o preço cobrado por outras companhias pelo mesmo trecho variava de 269 a 605 dólares. No mês passado, a JetBlue deu um passo formidável e em geral arriscado. Ela abriu o capital na Bolsa de Valores de Nova York. Foi um sucesso. As ações galoparam 67% logo no primeiro dia, um recorde em Wall Street desde o estouro da bolha de internet em 2000. Os méritos foram todos para David Neeleman, 42 anos, fundador e principal executivo da JetBlue. Filho de missionários mórmons, Neeleman nasceu no Brasil, onde viveu até os 5 anos. Seguindo os passos do pai, voltou ao país aos 19 anos, para ser missionário no Nordeste, onde viveu mais dois anos. Ainda fala um bom português. Casado, é pai de nove filhos. De seu escritório em Nova York, Neeleman falou a VEJA.
Veja – Por que as empresas aéreas geram tantas queixas?
Neeleman – Os passageiros querem ser tratados como clientes e não como carga. É um princípio que parece simples, mas tem sido bastante esquecido pelo setor de aviação. Obviamente, clientes esperam que os vôos decolem na hora. Quando isso não acontece, eles desejam saber a verdadeira razão do atraso. Não querem ser tratados como se não pudessem saber a verdade. As queixas derivam dessa situação de abandono em que as companhias costumam deixar os passageiros. Na JetBlue essa atitude é considerada uma falta gravíssima.
Veja – A indústria aérea fala em crise desde o fim da II Guerra Mundial. Afinal, esse negócio é viável?
Neeleman – O setor opera há cinqüenta anos de uma determinada forma. As empresas querem ser um pouco de tudo. Tentam servir a todos e vencer em qualquer segmento de mercado. Querem operar em todas as rotas. Por isso, são obrigadas a possuir e manter diferentes tipos de avião. Ora, é isso que as torna ineficientes. A conseqüência imediata é que elas são obrigadas a cobrar mais pelas passagens aéreas. Como nem todo mundo aceita pagar preços altos para voar elas perdem passageiros. Ou fazem diferenciações absurdas de tarifas. Há uma enorme disparidade entre a passagem mais cara e a mais barata. Isso gera indignação. Os passageiros sentem que estão pagando mais do que deveriam.
Veja – A JetBlue foi obrigada a adiar a abertura de capital na bolsa, marcada para o segundo semestre do ano passado, por causa dos ataques de 11 de setembro. Desde então, como a empresa lida com o medo de voar que tomou conta de grande parte dos passageiros?
Neeleman – Segurança passou a ser assunto do presidente da empresa. Nossa primeira preocupação foi impedir que uma pessoa qualquer conseguisse entrar na cabine do piloto. Fomos a primeira companhia aérea americana a instalar portas blindadas à prova de bala. Fizemos uma ampla divulgação dessa iniciativa, avisamos que seríamos muito rigorosos nas revistas e na identificação dos passageiros. Foi uma forma de desincentivar pessoas com más intenções de embarcar em nossos aviões. Instalamos câmaras nas cabines de passageiros. Elas projetam imagens numa tela dentro da cabine de controle e, dessa forma, os pilotos podem monitorar todo o avião. Pelo movimento nas nossas aeronaves, ficou claro que as pessoas gostaram da nossa reação rápida.
Veja – O senhor imagina que de agora em diante toda companhia aérea vai ter de se igualar à israelense El Al, dona do melhor esquema de segurança aérea do mundo?
Neeleman – Não totalmente. Mas, com certeza, temos de copiar muitos de seus hábitos de segurança. Obviamente a El Al enfrenta desafios mais difíceis que os nossos, mas a tendência é que todas as companhias nunca mais rebaixem a prioridade da segurança em suas operações.
Veja – Não é um exagero quando se pede para senhoras idosas que vão passar as férias na Flórida, ou até para tripulantes, que tirem os sapatos e tenham sua bagagem de mão inspecionada como condição para embarcar?
Neeleman – Sem dúvida, ainda há ineficiência no sistema de segurança. Estamos examinando pessoas que não precisam ser examinadas e incomodando muita gente. Mas há uma série de medidas a ser implementadas no longo prazo. Uma delas seria, por exemplo, um "cartão de confiança" para cada passageiro ou um banco de dados no aeroporto com nomes de indivíduos suspeitos.
Veja – Um dos pontos fracos das companhias aéreas é a flutuação do setor de petróleo. Como lidar com isso?
Neeleman – No nosso caso fazemos operações financeiras que nos compensam quando o preço do combustível sobe. São operações com os chamados derivativos. O que a JetBlue faz mais que qualquer outra companhia é ter as aeronaves mais eficientes em termos de combustível – no ano passado, apenas 14% dos nossos gastos foram em combustível, um consumo baixíssimo em comparação com a média do setor. Assim, o aumento no preço do combustível nos afeta proporcionalmente menos que a qualquer outra empresa. Além disso, usamos mais tecnologia e fazemos com que nossos aviões voem mais horas por dia. Dessa forma, oferecemos mais por menos. Em vez de servir todas as cidades, todas as pessoas, com todos os tipos de avião, somos mais eficientes e podemos baixar os preços, porque nossos custos são menores. E podemos ganhar mais dinheiro que eles, cobrando menos por passagem. Isso pode parecer estranho, mas é possível quando se tem 40% a menos de custo.
Veja – Será que essa fórmula é aplicável ao Brasil, onde combustível, impostos e manutenção são muito mais caros?
Neeleman – Sim, é possível fazer isso no Brasil e é importante que se faça, para que a aviação seja aberta para todo o país, em vez de servir apenas à elite. A mão-de-obra no Brasil é bem mais barata que a daqui. Acho que a companhia Gol, apesar de ser nova, tem feito um bom trabalho em seguir um modelo de eficiência, além de ter um bom capital por trás, por pertencer a uma companhia de ônibus.
Veja – Quando a recessão econômica apertou o bolso dos executivos, eles passaram a preferir ainda mais sua empresa. Agora que a economia voltou a crescer, eles a abandonaram?
Neeleman – Não. Nós cuidamos bem deles. Decolamos na hora, somos a única companhia aérea que oferece uma televisão para cada passageiro, o espaço para as pernas é acima da média e, principalmente, oferecemos uma freqüência maior de vôos. Executivos gostam de ter vários vôos disponíveis.
Veja – A JetBlue fez talvez a mais bem-sucedida abertura de capital da história recente dos Estados Unidos. O que isso sinaliza?
Neeleman – O mercado está dizendo que concorda com nosso modelo de oferecer o melhor serviço de classe econômica pelo melhor preço. Sinaliza também que o mercado acha difícil que outras empresas possam copiar nossa maneira de voar. Elas têm um custo alto, são ineficientes, têm diferentes tipos de avião e, por isso, não podem oferecer preços convidativos.
Veja – As companhias aéreas americanas gigantescas e tradicionais permitiram que a JetBlue decolasse sem nenhuma resistência?
Neeleman – Não. Elas tentaram baixar os preços e nos tirar do mercado.
Veja – E como vocês resistiram?
Neeleman – Baixando mais. Estamos conseguindo manter o preço das nossas passagens na metade do cobrado pela concorrência. Isso mantendo nosso produto sempre melhor que o delas. Quando você tem a oferecer serviço e preço é difícil perder a clientela. Nosso segredo é ganhar dinheiro cobrando preços baixos.
Veja – Como o senhor explica que a britânica Virgin Atlantic faça tanto sucesso com um modelo totalmente oposto ao seu?
Neeleman – Na verdade, pegamos algumas idéias da Virgin, como colocar entretenimento em cada poltrona do avião. A companhia britânica tem feito um grande negócio na rota transatlântica. Muita gente diz que a JetBlue é um cruzamento entre a Southwest Airlines, que é lucrativa e voa com baixos custos, e a Virgin. Essa é uma definição que me agrada muito. Nossas aeromoças usam o uniforme mais elegante possível. Nossos pilotos são afáveis e cordiais. Enfim, nada na JetBlue lembra uma companhia que oferece tantos descontos.
Veja – O modelo da JetBlue funcionaria numa companhia maior? Em outras palavras, se vocês crescerem, a mágica continuará dando certo?
Neeleman – Acho que sim. Teremos 34 aviões no fim deste ano e 48 no fim do ano que vem. Estamos comprando, em média, um avião por mês. Isso é uma grande expansão, mas temos certeza de que manteremos nossa atuação apenas no mercado doméstico.
Veja – O senhor é um dos mais famosos portadores da SDA, a "Síndrome de Déficit de Atenção", do país. Como lidar com essa condição que o acompanha desde a infância?
Neeleman – É algo com que aprendi a conviver. Faz com que eu seja criativo. Acho que até gosto. A SDA não é propriamente ruim. Ela faz com que você tenha bastante dificuldade de se concentrar em algo que não lhe interesse. Alguém pode estar falando com você sobre um assunto e você estar pensando em outro. Mais uma característica dos portadores de SDA é que, depois de obter muito sucesso numa atividade qualquer, continuamos insatisfeitos, com constante sensação de dever não cumprido. Quando essa coisa se degenera, a pessoa pode recorrer ao álcool ou às drogas numa proporção maior do que as pessoas normais. Nem refrigerante eu bebo. O lado positivo da SDA é que, uma vez que encontramos algo que nos interessa, temos a habilidade de hiperconcentração – quando isso acontece, tudo em volta se torna insignificante.
Veja – A sua religião ainda teve ou tem alguma influência na sua vida e no seu trabalho?
Neeleman – Muita. Quando estive no Brasil como missionário, aprendi belos princípios. Trabalhei em favelas com gente simples e maravilhosa que mudou minha vida. Acreditamos que as relações que temos com a família, amigos e empregados são importantes, pois elas continuarão depois desta vida. Então devemos aprender a focar nas relações com as pessoas que nos cercam, em vez de pensar apenas em ganhar dinheiro.
Veja – Como foi sua experiência como missionário mórmon no Brasil?
Neeleman – O Brasil é um país excelente para um missionário. Estive em Recife, João Pessoa e Campina Grande. Quando ensinamos religião, não são os ricos que nos escutam. São as pessoas simples e carentes. Trabalhei numa favela onde todos eram muito receptivos, pois lhes passávamos mensagens de esperança. Lá, uma pequena casa abrigava nossa igreja – os freqüentadores eram mulheres e crianças que mal tinham o que vestir e calçar. Quando voltei lá uma geração mais tarde, muitas crianças tinham se transformado em missionários. No lugar da pequena casa, foi construído um templo de 3 ou 4 milhões de dólares. Boa parte do dinheiro veio dos Estados Unidos. A igreja empresta dinheiro para pagar os estudos dos fiéis. É incrível como tudo mudou numa única geração. Calculo que a comunidade brasileira de mórmons seja de uns 200.000 ou 250.000 fiéis. E o que impressiona é que metade dos missionários no Brasil são brasileiros.
Veja – O senhor ainda tem ligações fortes com o Brasil?
Neeleman – Sim. Falo português em todas as oportunidades que aparecem (em português). Não tenho vocabulário para falar sobre aviões, mas posso falar sobre religião e conversar. Nasci lá, sou brasileiro. Saí de lá aos 5 anos e voltei aos 19. Quando eu contava aos amigos brasileiros que o nome da minha namorada, hoje minha mulher, era Vicky, brincavam que ela era a Vicky-Vaporub. O Brasil é muito bom. Agora ando muito ocupado, mas vou visitar o país novamente. Ainda tenho muitos amigos lá e quase comprei uma casa de um deles em Parati. Mas ele acabou vendendo antes de saber que eu queria. O objetivo era ir uma vez por ano com a família.
Veja – Família no seu caso significa uma ninhada de nove, que vai de 3 a 20 anos de idade. Como é a sua rotina com essa criançada em casa? Algum plano de expansão nessa área também?
Neeleman – Ainda não. Mas a minha esposa quer mais um bebê. Entre a minha família, a minha igreja, as horas em que leio a Bíblia em casa e o meu trabalho, não sobra tempo para nada. Vou à igreja todos os domingos e passo todos os fins de semana com a família. Nada de trabalho. Desfruto os dois dias com a minha família.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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