Luciana Pajecki
02.julho.2005
Tania Menai, de Nova York
Uma piada judaica diz que, para saber se uma cerimônia de casamento é ortodoxa, liberal ou progressista, basta reparar em qual mulher está grávida. Se for a mãe da noiva, trata-se de um casamento ortodoxo. Se a barriguda for a noiva, o casamento é liberal. Já no casamento progressista, quem corre o risco de estar grávida é mesmo a rabina. Gravidez ainda não é uma realidade na vida da jovem paulistana Luciana Pajecki, mas o rabinato, sim. Aos 30 anos, a bela Luciana acaba de se formar no Jewish Theological Seminar, na Universidade Columbia, em Nova York.
Na semana passada, ela desembarcou em São Paulo, onde, na sexta-feira, 1o Luciana dividiu o púlpito com o rabino argentino Adrian Gottfried, que viu a freqüência de sua sinagoga crescer de 100 para 400 famílias nos últimos seis anos. Calcula-se que a comunidade judaica brasileira tenha hoje 250 mil pessoas, das quais 180 mil moram em São Paulo. O restante vive no Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Paraná, Manaus, Belém e Rio Grande do Sul. Mas o rabinato exercido por mulheres é algo tão novo no Brasil que há quem nunca tenha visto uma. Luciana é a segunda rabina brasileira a se formar – a primeira, Lia Bass, seguiu a carreira nos Estados Unidos. No Rio de Janeiro, a sinagoga Associação Religiosa Israelita (ARI), contratou a rabina uruguaia Sandra Kochman há pouco mais de um ano, dando início à idéia no Brasil. No final deste ano, porém, ela deixará o Rio rumo a Israel.
Luciana não cresceu em ambiente ortodoxo. Tampouco se casou com um homem religioso – seu marido trabalha no mercado financeiro. Depois de estudar direito e psicologia, chegou à certeza de que seus questionamentos de vida a ligavam à sua religião. Em 1999, mudou-se com o marido para Nova York, onde estudou em horário integral, deu aulas, participou de seminários, realizou casamentos e trabalhou como voluntária em hospitais e residências para idosos. Em janeiro, participou de uma viagem que levou jovens candidatos a rabino até Ciudad Romero, uma vila agrícola com cerca de 240 habitantes, a duas horas de San Salvador, capital salvadorenha. A vila faz parte de uma cooperativa que, com ajuda financeira de uma organização judaica dos EUA, promove o desenvolvimento auto-sustentável das comunidades de baixa-renda. Durante nove dias, trabalharam no campo, limpando, arando e adubando a terra de vários pequenos produtores e ouvindo deles suas histórias de sucessos e sacrifícios.
Com tantas experiências, Luciana se emociona ao contar a NoMínimo que logo nos primeiros dias de Brasil, fará a reza (e apenas a reza) da circuncisão do filho de uma mulher que ela ajudou a converter. Irmã de um gastroenterologista de sucesso em São Paulo, o médico Denis Pajecki, a rabina Luciana, cujo sorriso e bom humor são constantes, costuma contar uma outra piada que fala sobre o dia da posse da primeira presidente dos Estados Unidos. “A mãe judia da tal presidente foi chamada ao palco para proferir algumas palavras. E foi logo ao assunto: ‘Meu outro filho é médico’.”
O Brasil tem o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, como símbolo do judaísmo progressista. O quanto ele, de fato, representa o judaísmo no Brasil?
Ao meu ver, o Sobel é uma referência da atitude que a comunidade judaica tem no mundo em geral. Ele possui uma postura progressista – seu diálogo inter-religioso é algo que a ortodoxia não faz. Ele falou contra a ditadura militar, uma atitude também progressista. De uma certa maneira, o Sobel foi pioneiro em estimular a comunidade a olhar para fora e isso afetou muito a imagem do judaísmo. A comunidade judaica é tão pequena e tão desconhecida dos brasileiros que a iniciativa dele ajudou a criar uma imagem melhor. No entanto, como rabino reformista, ele não incentivou na sua comunidade as mudanças introduzidas pelo seu próprio movimento em relação à mulher. O rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica Brasileira, no Rio de Janeiro, é outro exemplo de reforma no Brasil. Ele tem desenvolvido uma linguagem reformista dentro e fora de sua comunidade – as pessoas de sua sinagoga são bem engajadas nas questões de justiça social e nos problemas da sociedade carioca.
E o que você pretende levar para a sua comunidade?
Implicitamente, vou levar valores de uma comunidade igualitária. Mas, este não é o primeiro item da minha agenda – isso vai ser passado para as pessoas simplesmente pelo fato de eu estar lá. Minha prioridade será resgatar o estudo do judaísmo. No Brasil, o estudo judaico é muito infantilizado – estuda-se até o bar-mitzváh (celebração da maioridade religiosa aos 13 anos); depois, ninguém mais estuda. O conceito que os judeus brasileiros têm de judaísmo é algo bem infantil e dogmático. E este não é o caso. Quero também passar para as pessoas que o judaísmo não serve só a si próprio; ele tem uma responsabilidade em relação ao mundo. Cresci no que chamo de “judaísmo de sobrevivência”: quando se questiona a importância de ser judeu, a resposta é remetida ao Holocausto; não deixar Hitler concluir o que ele começou. Não quero descartar esta mensagem. Mas, paralelamente, devemos ter uma mensagem mais profética. O judaísmo tem capacidade de imaginar um mundo melhor e dispõe de ferramentas para construir esse mundo.
Por que a comunidade Shalom abriu os braços para receber a primeira rabina brasileira?
Antes de me conhecer como rabina, a Shalom já me conhecia em outras atividades. Eu dava aula de ensino judaico e de conversão. Inclusive foi essa experiência na Shalom e o rabino Adrian que influenciaram a minha decisão de seguir o rabinato.
Comparado aos Estados Unidos, onde você viveu, como o Brasil vê hoje a comunidade judaica?
Moro longe do Brasil há seis anos, mas posso dizer que uma das diferenças que sinto é o desconhecimento e a visão estereotipada que os brasileiros ainda têm de nossa comunidade. Comparando São Paulo a Nova York, os nova-iorquinos não-judeus conhecem muito mais o judaísmo. A comunidade judaica americana atua muito mais no âmbito público, nas questões políticas e sociais do país. Existem rabinos, por exemplo, que lutam pelo aumento de salários em seus municípios, rabinos que lutam para introduzir o livre comércio no setor de café – e isso ajuda muito a expor o judaísmo e a desmistificar muitas imagens. Em geral, em Nova York, “os diferentes” conseguem sentar numa mesa e conversar sem a necessidade de um convencer o outro de sua idéias. As diferenças podem conviver de uma maneira mais harmoniosa. Não sinto isso no Brasil. Talvez porque Nova York seja uma cidade onde as pessoas sejam mais sensíveis às diferenças, elas criam uma linguagem politicamente correta e são mais abertas. Em Nova York, as pessoas argumentam e debatem mais. Mas tenho certeza de que, se eu em outra cidade dos Estados Unidos, encontraria também uma visão estereotipada dos judeus, além de anti-semitismo.
Como a sua família vê o rabinato?
Começa agora o desafio de lidar com a minha escolha, mas, de maneira geral, eles se orgulham – e, de certa forma, minha escolha os trouxe mais para perto da religião. Meu pai nunca jejuava no Dia do Perdão, e agora ele jejua. Eles passaram a ter uma conexão maior. Existe também uma outra adaptação – em Nova York, as pessoas aceitam melhor o fato de haver gente que respeita a dieta kasher (dieta judaica). Lá, cada um vive como quer. No Brasil, isso é mais difícil. Para mim, será um desafio achar um meio termo entre minha atividade e a minha família, de forma que não haja invasão da minha escolha e vice-versa. E para que o entendimento mútuo de que a escolha de um não signifique um julgamento sobre a escolha do outro.
E como você adaptou a escolha ao seu casamento?
Meu marido se adaptou bem – mas acredito que também tenha sido um processo difícil para ele. O meu treinamento no rabinato não foi apenas intelectual. Envolveu várias mudanças que afetaram a nossa relação – então tivemos de “re-conversar” várias formas relacionamento, de como a gente mantém a dieta em casa, de como comer fora.
Você não se veste como ortodoxa, ou seja, não cobre a cabeça e os braços nem usa saia longas. Mas alguma coisa deve ter mudado no seu vestuário, certo?
O motivo pelo qual as mulheres religiosas se vestem assim vem de um conceito chamado tzniut, que significa “modéstia”. Para mim, este princípio ainda é importante. Contudo, interpreto o princípio de forma diferente. Por causa dele, tenho uma relação diferente com roupas. Não quero impor minhas interpretações. Não uso peruca e uso calça normalmente. Mas. quando compro uma roupa, tenho consciência da mensagem que estou passando através dela – independentemente da qualidade da roupa, pergunto-me o que eu quero que as pessoas vejam primeiro em mim.
Qual será o seu maior desafio?
Uma das minhas preocupações é o fato de estar saindo de um ambiente judaico super rico, onde o diálogo entre os diferentes movimentos é intenso, e chegar a uma cidade onde os rabinos não-ortodoxos são minoria. Terei poucas pessoas com quem fazer trocas. No Brasil, a ortodoxia não me parece viver um momento aberto ao diálogo. Para mim, isso seria muito importante. Não estou falando em debater visões sobre algumas tradições, mas o simples fato de estudar junto. Quero muito achar pessoas com quem possa estudar. No Brasil, isso é muito limitado. Um outro desafio será encontrar a minha própria linguagem rabínica – e não cair no erro de querer imitar a linguagem masculina.
Como você pretende conciliar, no futuro, o papel de mãe com o de rabina?
Não tenho uma resposta. Tenho certeza que isso vai afetar a carreira. Não estou procurando ocupar o lugar de um homem, não quero ser uma rabina de acordo com os modelos masculinos – quero criar o meu próprio rabinato. Ser mãe determinará que, durante alguns meses, não estarei tão disposta ou disponível para a comunidade. Por exemplo, estive em uma conferência em São Paulo há poucos dias e a rabina estrangeira que faria a palestra deixou de ir porque sua filha estava hospitalizada. Chegaram a falar que, em outras épocas, um rabino homem talvez não deixasse de ir a uma conferência por causa disso. Isso muda muito a nossa maneira de ver a liderança - e o papel do líder que fica no topo versus o líder mais humano. O modelo de rabino é aquele disponível 24 horas, mas eu terei de encontrar os meus limites.
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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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