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É dura essa vida de imigrante
01.fevereiro.2004

Foi escondido num avião de carga que o engenheiro Bovic Antosi fugiu do Congo, sua pátria amada. Sem mesmo saber o destino do vôo, lembrava-se apenas de sua mulher e filha, arrancadas de casa e desaparecidas durante a guerra. Já Labib Salama deixou o Egito há mais de dez anos, mas, até uns meses atrás, ainda conseguia reunir os amigos para fumar o seu narguilé e tomar café egípcio em seu pequeno restaurante. O advogado colombiano Camilo Perdomo já liderou 500 funcionários da Autoridade Civil de Aviação em Bogotá. Hoje se vira como entregador da comida que ele mesmo prepara. Os idiomas são diferentes. As histórias também, mas todas elas se cruzam nas ruas do Queens, um dos cinco
distritos que compõem a cidade de Nova York. Segundo o censo americano, o Queens é o lugar que concentra a maior diversidade de imigrantes dos Estados Unidos. Nada menos do que 100 nacionalidades e 138 línguas se entrelaçam diariamente nas calçadas, nos restaurantes, nas escolas e nos abarrotados vagões do metrô.

Em meio a esta Babel vive o casal de americanos Warren Leher e Judith Sloan. Ávidos por rodar o mundo e retratar diferentes culturas, os dois jamais sonharam em morar no Queens, que, além de abrigar dois aeorportos (JFK e La Guardia), não tem o glamour de Manhattan nem o charme do Brooklyn. “Mas a nossa conta bancária nos permitiu um apartamento no Queens e uma viagem por seus quarteirões”, contenta-se o bem-humorado Warren.

Durante três anos, o casal, que transita entre as áreas de teatro, literatura e fotografia, saiu pelas ruas da vizinhança em busca das histórias escondidas debaixo de véus, colares e túnicas. O projeto resultou no livro “Crossing the BLVD: strangers, neighbors, aliens in a new America” (“Cruzando a Avenida: desconhecidos, vizinhos, estrangeiros numa nova América” – seria a tradução para o português do título lançado pela editora WW Norton). Uma exposição com o mesmo nome está em cartaz no Queens Museum of Art até o dia 14 de março. O título tem duplo sentido: refere-se à Queens Boulevard, imensa avenida que cruza o bairro e é famosa por liderar o ranking de atropelamentos na cidade – 84 pedestres já morreram desde 1993 -, e à trajetória até chegar aos Estados Unidos de cada um dos 80 imigrantes retratados pela dupla. Nenhum deles é brasileiro.

Antes e depois do 11 de setembro

Ao sair da linha 7 do metrô em direção ao museu, cruza-se a tal avenida. Postes enfeitados com flores, velas e fotos das vítimas dos atropelamentos lembram a dura realidade da vizinhança. Despida de qualquer beleza, a Queens Boulevard abriga uma rara riqueza cultural. Numa só calçada, pode-se tomar café num boteco haitiano, penhorar jóias com guianeses, fazer uma boquinha na lanchonete do mexicano, aparar o cabelo na barbearia do paquistanês, passar no coreano para costurar o botão do casaco, ter o futuro desvendado por uma vidente indiana e, claro, matar a saudade do pão-de-queijo na padaria do brasileiro. Warren e Judith focaram o projeto nos “novos imigrantes” – aqueles que chegaram aos EUA depois de 1965, quando entrou em vigor uma nova lei de imigração. Até então, os imigrantes vinham majoritariamente do oeste europeu. A nova lei abriu as portas dos EUA a imigrantes de outras origens. O país e o Queens ficaram mais coloridos, mostram o livro e a exposição organizados por Warren Leher e Judith Sloan.

A maior parte dos imigrantes retratados no livro veio para os EUA na década de 90. “A tecnologia, Internet, TV a cabo e satélites permitem que eles mantenham um intenso contato com seus países de origem”, diz Warren. “Esta é a maior diferença em comparação com imigrações de décadas anteriores”. As páginas trazem relatos na primeira pessoa, mantendo o tom da narrativa de cada um, sempre acompanhada por explicações e comentários dos autores. Os textos são ilustrados por fotos coloridas dos imigrantes e de seus pertences (muitos, os únicos objetos que eles agarraram ao fugir de casa em seus países). “Preferi fotografar os personagens com fundo branco para ressaltar a personalidade de cada um”, conta Warren, autor das fotos. “Além disso, muitos tinham vergonha de mostrar a precariedade dos lugares onde vivem”.

O livro ainda capta mudanças na vida dos imigrantes depois de 11 de setembro de 2001. “Estávamos no meio do projeto quando tudo aconteceu. Hoje, seria mais difícil conseguir depoimentos de pessoas que muitas vezes não têm documentos americanos. Elas teriam medo de se expor”, lembra Judith. Ela e o marido - descendentes de imigrantes judeus vindos da Rússia, Polônia e do Holocausto nazista - trabalharam em parceria com o Comitê de Advogados de Direitos Humanos.

Tanto o livro como a exposição são divididos por temas que indicam a razão pela qual as pessoas chegaram aqui: perseguições políticas, religiosas, busca de trabalho, principalmente. “Muitos americanos se iludem, achando que toda essa gente sonha em morar nos EUA”, diz Warren. “Que nada. Elas preferiam estar em seus países, com sua gente e sua língua. Mas, com tantas guerras, preconceitos e crises econômicas, não têm outra opção senão buscar uma vida mais digna”.

Bebida por conta dos agressores

Nem sempre, porém, a tal dignidade está logo ali. O congolês Bovic fugiu da República Democrática do Congo sentado em uma caixa de madeira num avião de carga. Não sabia sequer o destino do vôo. Pousou num lugar desconhecido, recebeu um passaporte falso e um bilhete aéreo para o aeroporto JFK. Ao chegar, ainda no aeroporto, pediu asilo político. Foi algemado no ato e confinado, com mais dez homens, num lugar sem comida, água ou banheiro. Bovic não cometeu nenhum crime, mas ficou preso por dois anos em Wackenhut, uma cadeia vizinha ao JFK, com centenas de portas e nenhuma janela até um advogado conseguir regularizar sua situação. Ao olhar para o sol pela primeira vez em 24 meses, desmaiou.

Já Camilo Perdomo e Juan Carlos Veloza morrem de saudades da Colômbia, da família, dos amigos e da boa qualidade de vida que levavam por lá, mas não sentem nenhuma falta das ameaças de morte que sofriam por serem homossexuais. Pediram asilo nos EUA simplesmente por serem gays. E passaram horas em entrevistas longas e separadas para provar sua opção sexual aos oficiais de imigração. Tiveram de responder perguntas do tipo “Como você pode provar que é gay já que não parece?” ou “Como foi a primeira vez em que você beijou um homem?” E ainda tiveram de prometer que continuariam homossexuais para justificar a aprovação do asilo. Apesar da humilhação, Camilo e Juan Carlos trataram de trazer da Colômbia a filha do casal – a cadela Carlota.

Labib Salama sabe muito bem o que 11 de setembro representa para a comunidade árabe dos EUA. Egípcio, dono de um café na Stenway Street, ele viu seu estabelecimento ser invadido por quatro americanos cinco dias após os atentados às Torres Gêmeas. “Eram três da manhã” conta ele no livro. “Eles arrebentaram as janelas, as mesas, cadeiras e copos. A polícia veio imediatamente.” Labib, porém, resolveu não dar queixa. Entendeu que naquele momento os americanos estavam tristes e com raiva. Cinco ou seis clientes ajudaram Labib a limpar a bagunça. Uma hora depois, lá estavam os mesmos americanos novamente. Dessa vez, vieram pedir desculpas. Ajudaram a limpar o café, pagaram bebidas para todos e ficaram conversando até as oito da manhã. Queriam saber por que Labib não deu queixa na polícia. E Labib estava curioso para saber a razão do ataque ao seu pequeno café. Nos meses seguintes, a clientela do café de Labib foi desaparecendo. O FBI teve permissão do Congresso e do Pentágono para prender “suspeitos” e deportá-los para seus paises de origem. Labib fechou o café. Hoje, dirige um táxi.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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