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Marido e mulher numa pessoa só
26.fevereiro.2004

Tania Menai

Charlotte von Mahlsdorf era uma impossibilidade. Não por ter sobrevivido ao nazismo da Segunda Guerra Mundial sem deixar a Alemanha, onde nasceu em 1928. Nem por ter respirado o comunismo em Berlim até o dia em que o muro foi esfacelado. Mas por ter vivenciado a desumanidade dos dois regimes sem tirar as longas saias, as camisas bordadas e seu imanente colar de pérolas. Charlotte era um travesti. Acreditava pertencer a um terceiro sexo. Morta há dois anos, sua história é tema de uma peça de teatro que tem arrancado aplausos dos mais respeitados críticos americanos - “I am my own wife” (“Sou minha própria esposa”) estreou em maio do ano passado em um pequeno teatro nova-iorquino. O êxito foi tamanho que em dezembro ganhou a Broadway, um passo arriscado, considerando que a peça está longe de cair na categoria dos musicais turísticos.

Baseada numa série de entrevistas que Charlotte concedeu ao autor Doug Wright (que também assina “Quills”, sobre os incendiários escritos do Marquês de Sade, posteriormente adaptados por ele para o cinema), a peça lota diariamente o Lyceum Theatre. Não, o público não está lá para assistir a um show de drag queen. Charlotte nem sequer usava maquiagem. Trata-se de um monólogo em que a diva alemã é vivida pelo ator americano Jefferson Mays (foto acima). Com uma versatilidade ímpar, ele ainda interpreta 34 personagens que cruzaram a trajetória de Charlotte. Durante as duas horas de encenação, Mays não troca de modelito – todo de preto, veste um lenço de cabelo, blusa abotoada até o pescoço, saia longa e um sapato estilo ortopédico. E, claro, o tal colar de pérolas. Com fala mansa, pausada e sotaque carregado, ele é fiel aos maneirismos da alemã – as frases são salpicadas por palavras e expressões alemãs. Muitas são ditas inteiramente em alemão. Quem não entendeu, entendesse.

O exemplo de Tante Louise

Em 1992, Doug Wright, que vive em Nova York, descobriu Charlotte por meio de um amigo que trabalhava como correspondente em Berlim. Charlotte, então com 64 anos, mantinha um museu – o Grunderzeit-Museum – que havia construído para abrigar sua coleção de móveis, antiguidades como os amados gramofones. Ela mostrava aos visitantes peça por peça com a meticulosidade de um cirurgião. Ao visitar o museu, Doug não resistiu à força rara da personagem. No ano seguinte, iniciou uma série de viagens a Berlim, onde fez as entrevistas. As conversas, gravadas em fita cassete, não começavam antes das dez da noite. E só acabavam com o nascer-do-sol.

Com o nome de Lothar Berfelde, Charlotte nasceu na cidade de Mahlsdorf. Era filho de uma mãe generosa e de um pai nazista (que, além do mais, ainda espancava a esposa). Em 1943, quando o governo alemão obrigou a evacuação de mães e filhos por causa dos ataques aéreos, Lothar, sua mãe e seus irmãos se hospedaram na casa de Tante (“Tia”) Louise, no leste da Prússia. Tante Louise, irmã do pai de Lothar, era lésbica. Vestia macacões masculinos e esquecia os vestidos no armário. Certa vez, Lothar resolveu experimentá-los. E gostou. “Você deveria ter sido uma mulher e eu um homem”, disse a tia ao menino. Tante Louise ainda colocou nas mãos de Lothar o livro “Die Transvestiten”, de Magnus Hirschfeld – que criou, então, o termo travesti - e, como boa alemã, ordenou: “Leia!”

Para Lothar, a época do final da guerra foi uma das piores de sua vida. Ele se recusava a andar armado ou uniformizado. Preferia usar cabelos longos e loiros, sapatos femininos e os casacos da mãe. Nada que agradasse aos nazistas, que, durante toda a guerra, deportaram homossexuais para os campos de concentração. Ao voltar para casa, em fevereiro de 1943, Lothar engatou uma discussão com seu pai – e acabou matando-o a pauladas. Foi preso, mas não chegou a cumprir sua sentença de quatro anos. No dia em que os russos invadiram Berlim, as portas da cadeia foram abertas.

Com o fim da guerra, a vida gay ressurgiu em Berlim. Mas a festa durou pouco. Em 1952, os comunistas fecharam todos os estabelecimentos gays, incluindo a taverna Mulack-Ritze, uma relíquia fundada em 1770. Por este bar, circularam nomes como Bertolt Brecht e Marlene Dietrich. “Os donos da taverna preferiam os homossexuais – eles não ficam bêbados, não arrumam brigas e sempre têm dinheiro”, contava Charlotte. Um dia antes de os comunistas baterem na porta do Mulack-Ritze, Charlotte tratou de comprar tudo – as mesas, os copos, os talheres e as placas. Uma delas dizia “É proibido dançar”. A alemã guardou toda esta parafernália no porão de seu museu. E era lá que os homossexuais se encontravam durante o regime comunista – para beber, divertir-se e outras coisas que mais lhes apetecessem. Não faltavam camas nem chaise longues. Charlotte pintou as janelas de preto para que a Stasi, a polícia secreta comunista, não os perturbasse.

Cúmplice da polícia secreta

Depois da queda do muro, a preservação da taverna foi reconhecida pelo Mistério da Cultura com uma importante contribuição à preservação da memória alemã. Charlotte, que em 1971 tinha ssumido o nome feminino e o sobrenome emprestado da cidade natal, foi condecorada pelo governo alemão. Mas, para surpresa de Doug Wright, a agitada convivência gay que Charlotte alimentava no porão de seu museu em plena Berlim comunista só se deu por uma razão – ela era cúmplice das autoridades comunistas.

Ainda nos anos 70, agentes da Stasi abordaram Charlotte, prometendo tratá-la bem – e até um automóvel - se ela lhes passasse o nome de pessoas que freqüentavam seu museu. Dois homens foram ao museu e lhe ditaram um texto que Charlotte transcreveu e assinou: "Eu, Lothar Berfelde, me comprometo, de livre e espontânea vontade, a trabalhar junto ao Ministério de Seguranca do Estado. Reportarei toda e qualquer ação que pareça de caráter inimigo do Estado". Ela chegou a ter um nome-código - Park - e reportou à polícia secreta transaçõs ilegais de antiguidades, sendo responsável inclusive pela prisão de um amigo colecionador. Tudo isso veio à tona, porque depois da unificação das Alemanhas, qualquer cidadão pôde pedir uma copia dos arquivos da Stasi. Charlotte evidentemente tinha mantido a colaboração com o regime em segredo, mas a imprensa, com rápido aos arquivos, logo divulgou seu prontuário. A informação deixou o autor “I am my own wife” boquiaberto. Para Doung, àquela altura das entrevistas, Charotte já era uma amável vovó que lhe servia um caprichado café com bolo.

Charlotte nunca se casou. Aos 40 anos, sua mãe lhe perguntou se já não era hora de ela arrumar alguém. “Sou minha própria esposa”, respondeu. Para Doug, ela era um enigma. Um museu. Tanto que o diretor mantém na peça um erro de gramática que Charlotte cometia quando falava inglês. Ela usava o verbo to become (em inglês, “transformar”) em vez do verbo to receive (“receber”) - um erro provocado pela similaridade com o verbo alemão bekomen (“receber”) que acaba produzindo falas como essa: “Quando as pessoas morriam, eu me transformava em seus móveis; quando os judeus eram deportados, eu me transformava em seus móveis”.

Charlotte mudou-se para a Suécia em 1991. No dia 30 de abril de 2002, durante uma visita a seu museu em Berlim, sofreu uma parada cardíaca e morreu ali, entre os gramofones e móveis que transformou em história, a história que agora comove a Broadway.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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