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As flores do bem
06.setembro.2005

Tania Menai, de Nova York

06.09.2005 | Ganha uma flor quem adivinhar o que estariam fazendo quatro mulheres numa van - uma delas ao volante – soltas pelas ruas de Manhattan na madrugada de sexta-feira. Nem mesmo as mentes mais criativas responderiam que as quatro estariam a caminho de um casamento, de onde recolheriam flores para levá-las ao departamento de pacientes terminais de um hospital da cidade. Liderada pela americana Nancy Lawlor, este é o trabalho da Flower Power, uma organização criada em 2003 que, até hoje, já doou a hospitais e asilos uma quantidade de flores avaliada em mais de um milhão de dólares.

Quando resolveu deixar a carreira de atriz, Nancy assumiu um trabalho temporário num escritório que ficava em frente ao hotel Waldorf Astoria, onde o presidente Clinton costumava se hospedar antes de se mudar para Nova York. Na hora do almoço, ela costumava flanar pela recepção do hotel. Certa vez, reparou nas flores e se perguntou: “O que eles fazem com elas?” E adivinhou a resposta: “Com certeza, não as deixam aí até elas morrerem.” Imediatamente, ligou para a administração do hotel e, na semana seguinte, já tinha mas mãos o equivalente a dois mil dólares em flores.

“Há quem diga que flores não fazem parte das necessidades primárias, mas já tem muita gente tomando conta da comida e de abrigo - eu queria fazer algo pioneiro”, diz ela. “Era apenas uma questão de pegar as flores de um lugar e colocar em outro – e eu queria ser esta pessoa.” Ao procurar hospitais, viu que teria de superar a burocracia e restrições como horário de visita e acesso proibido a gente de fora. Procurou, então, um asilo, lugar onde nunca tinha estado antes. “É um novo mundo”, lembra nessa sexta-feira, com um punhado de flores nas mãos. “Faz parte da vida, é algo importante. Nunca saímos de lá sem estarmos tocados. Nunca.”

Flores de casamento são as mais frescas

O enfermeiro Ernest e a colega Ann: 'Isso parece uma floresta'
Emocionalmente, o trabalho da Flower Power é uma montanha russa. “Em questão de horas deixo o lugar mais feliz e rico do mundo para mergulhar no lugar mais desesperador”, diz Nancy. “Em certos momentos, eu queria apenas deixar as flores e ir para casa, não queria me envolver”, confessa. Mas não conseguiu. Ao chegar, as pessoas logo diziam “Você está indo embora? Não vá”, conta ela, chorando.

Nancy sempre se lembra de uma noite em que saiu de um casamento milionário e foi até um hospital do Harlem. Lá, um funcionário bem jovem a levou até uma mulher deitada no chão, sobre um colchão de espuma. Ela não podia dormir na cama. Além de não ser confortável, ela corria o risco de cair. Apesar da pele branca e dos cabelos loiros Nancy conta que a mulher estava tão magra que parecia uma daquelas imagens de etíopes famintos. Sua pele estava amarelada. Ela estava com Aids. “Trouxemos flores para você. Vamos colocar aqui perto de você, para que possa vê-las”, disse o enfermeiro. “Em casos assim, não há o que dizer. Ela era uma mulher de trinta e poucos anos, mas aparentava 80. Era mãe de três meninos, todos delinqüentes. Obviamente, nenhum deles podia visitá-la”, conta Nancy. Quatro horas depois, ela faleceu. Essas foram as últimas flores que ela ganhou. Talvez as únicas. “As mesmas flores foram usadas para o enterro”, recorda, sem conter as lágrimas.

O trabalho de Nancy lembra em muito as cenas do filme “Bed of Roses” (1996), em que o ator Christian Slater faz o papel de um floricultor que adora ver a reação das pessoas ao receber flores. Mas, antes de criar a Flower Power, Nancy não entendia patavinas sobre o universo floral. Aprendeu tudo na prática. “Ainda tenho o que aprender”, diz ela, que já recebeu elogios de Chris Giftos, o mestre dos floricultores nova-iorquinos que, por mais de 40 anos, foi responsável pelas flores dos quatro enormes vasos do lobby do Metropolitan Museum of Art.

Nancy se diz, no entanto, filosoficamente inspirada pelo americano Buckminster Fuller (1895-1983), um futurista que criou o que chamava de “ciência compreensiva da antecipação”. Ela conta: “Li alguns de seus livros. Ele era um gênio em matemática, arquitetura e filosofia e dizia que, se você quer fazer alguma diferença no mundo, basta buscar algo que está faltando e se transformar na pessoa que preencha este vazio. Dá para fazer muito com as flores que estavam jogando fora”, conclui ela, que já conta com amigos copiando a idéia em casamentos e bar-mitzvás da Califórnia.

Nancy prefere recolher flores de casamento porque são as mais frescas – duram mais do que flores que já passaram uma semana decorando um museu ou a entrada de um hotel. Num fim-de-semana de junho, ela recolheu flores de uma festa tão grande que o valor chegou a 200 mil dólares. “Eu tinha um caminhão gigante, lotado de flores, milhares e milhares delas. Tudo isso iria para o lixo”, lembra, após distribuir todas em três serviços de pacientes terminais e um asilo.

Em cada festa, a história muda. Quando não vêm em vasos prontos, os arranjos florais são feitos pelos voluntários, sentados no chão, enquanto as faxineiras varrem o salão.“Quando recolhemos flores num evento do Lincoln Center, tivemos cerca de 20 voluntários que fizeram lindos buquês”, lembra. Além de reportagens em revistas de casamentos e aparições em programas de televisão, como o show de Oprah Winfrey, Nancy ganhou o título de “Nova-iorquina da Semana”, um reconhecimento que a televisão local de Nova York dá aos que fazem bem para a comunidade. Mas o pilar de seu trabalho é o boca-a-boca. E isso é visível. Onde ela chega, as pessoas se aproximam para elogiá-la.

Outra grande ajuda à organização vem do relacionamento que Nancy criou com os maiores floricultores da cidade, incluindo o lendário Preston Bailey, que decora as festas da elite da cidade. Autor de livros sobre o design floral, seus clientes incluem o ziliardário Donald Trump e o ator Lawrence Fishburne. Segundo a revista “New York”, Bailey “não discute preço enquanto não tiver certeza de que será ele o escolhido para decorar o ambiente”. Floricultores como ele avisam aos noivos sobre o serviço de Nancy. A partir daí, os noivos doam as flores e dinheiro para que ela possa alugar a van, pagar a gasolina e sustentar a organização. “O valor da doação é sempre proporcional ao que os noivos gastaram com as flores”, diz ela.

“Vocês acabam de adicionar anos à minha vida”

Na sexta-feira, a repórter de NoMínimo acompanhou de perto o trabalho de Nancy – e ainda chamou mais duas amigas brasileiras, Joana e Mariana. Grávida de sete meses, Joana ganhou o assento dianteiro da van, ao lado de Nancy, enquanto as outras duas chacoalhavam na parte da trás. “Estou me sentindo o máximo saindo com três brasileiras”, brincou Nancy. Quando chegamos a um casamento, às 11.30 da noite, os noivos já tinha ido embora, o cozinheiro limpava a cozinha e os garçons desmontavam as mesas. A festa tinha acontecido num salão com vista para a iluminada Estátua da Liberdade, no Battery Park City, na ponta sul da ilha de Manhattan. “Seu trabalho é fantástico. Venha comigo, tenho que apresentá-la ao dono desta casa de festas”, disse a mestre de cerimônia do casamento.

Os arranjos, em vasos prateados, eram feitos de rosas chá e brancas, misturadas a flores violetas. Mariana logo tratou de recolher as flores que faziam parte do altar, enquanto Joana pegou os vasos e, um a um, levou à cozinha para esvaziá-los um pouco. “Se deixarmos cheios d’água, vamos derramá-los na van”, alertou. Recolhemos todos os vasos, descemos pelas escadas do fundo, e colocamos todas as flores na van. Nancy pegou a avenida expressa que cruza a ilha rumo à Rua 121, no East Harlem, extremo oposto daquele pólo de riqueza que acabávamos de visitar. Era um lugar em que não se deseja estar à uma da tarde, muito menos à uma da madrugada, como era o caso. No caminho, as curvas para lá e para cá derramaram alguns vasos, mas Mariana e eu, razoavelmente encharcadas, não nos importávamos nada com isso.

Ao chegar ao North General Hospital, entramos pela porta da emergência. Identificamo-nos, recebemos um crachá e fomos para o sétimo andar, onde ficam os pacientes terminais. Recebidos pelos enfermeiros Ernest e Ann, que ouviam uma rádio gospel nas alturas, visitamos 12 pacientes. Entrávamos cuidadosamente em cada um dos quartos. Todos eram idosos, nenhum tinha fotos de familiares, cartões, balões ou qualquer resquício de uma visita. Colocávamos as flores ao lado de suas camas. Uns dormiam. Outros abriam os olhos e agradeciam. “Muito obrigado”, murmurou um senhor magro e fraco que mal conseguia falar. “Quando a Flower Power vem aqui, o hospital parece uma floresta”, comentou Ernest, um sujeito grande e bondoso.

A surpresa da noite foi a reação de um senhor com câncer de próstata, médico de profissão. Pasmo com o arranjo, queria retribuir o presente de alguma forma. Mesmo com o braço ligado a tubos, ele pegou uma caneta e escreveu seu nome, telefone e endereço no badalado West Village: “Sou Dr. Ralph, sou médico. Se vocês algum dia precisarem de algum conselho de qualidade, me telefonem.” E me deu o papel. Pediu uma dedicatória e ganhou: “To Dr. Raplh, with love, Nancy, Joana, Mariana & Tania”. Sorriu e, como se não bastasse, num gesto cavalheiresco, pediu para eu tirar algumas flores do vaso e deu para cada uma de nós. “Esta é uma rosa branca, mas não acredito que nenhuma de vocês seja virgem”, brincou antes de acrescentar a frase mais gratificante da noite: “Vocês acabam de adicionar anos à minha vida”. E ele, certamente, às nossas.

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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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