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Ditadura predial
05.junho.2002

Morar em prédio de Manhattan é fazer tudo o que o conselho de moradores mandar

Tania Menai, de Nova York

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DAKOTA
Central Park West com 72
John Lennon foi morto em frente à entrada. Entre os moradores ilustres, Yoko Ono, Roberta Flack, Leonard Bernstein e Lauren Baccall. O controle de visitantes é rigorosíssimo.

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Quem se mudar para o número 180 da West End Avenue, área nobre de Nova York, e gostar de acender um cigarro depois do jantar pode tirar o isqueirinho da chuva. O conselho de diretores do prédio de 29 andares decidiu, há poucas semanas, que novos moradores estão proibidos de fumar em todas as dependências do edifício – inclusive em sua própria casa. Justificativa: a fumaça penetra no sistema de ventilação interna e invade os demais lares. Até em uma cidade onde fumar é vedado em tudo que é escritório e área pública e o que mais se vê no inverno é gente tiritando na rua para dar suas tragadas, o veto ao cigarro dentro do próprio lar não tem precedentes. Integra-se, no entanto, no padrão de exigências de uma instituição tipicamente nova-iorquina: o todo-poderoso conselho de moradores dos edifícios organizados em forma de cooperativa, os co-ops. É o conselho que decide quem pode comprar um apartamento no prédio, e com freqüência barra candidatos, na suposição de que vão perturbar a paz de espírito do condomínio. Uma vez passado pelo crivo, o feliz novo morador tem de se adaptar às regras: não ter hidromassagem, não pintar a casa de cores fortes, só fazer reforma com mestre-de-obras pré-aprovado.

Os co-ops não são exclusividade de Nova York, mas é lá que eles imperam: na parte nobre de Manhattan, cerca de 75% dos prédios de apartamentos próprios funcionam nesse sistema, em que o morador compra ações do edifício, como se fosse uma corporação – quanto mais ações, maior o apartamento. O conselho de moradores dita as leis internas e passa um pente finíssimo na hora de selecionar novos condôminos, não tendo sequer a obrigação de justificar bolas pretas. Barra-se por motivos financeiros – antes da compra, o candidato tem de escancarar sua conta bancária aos conselheiros. Barra-se também, e muito, em nome da tranqüilidade, e aí já tropeçaram celebridades como as cantoras Madonna e Mariah Carey, o ator Edward Burns (que tentou ocupar o apartamento vago com a morte de John Kennedy Jr.) e até Woody Allen, o nova-iorquino por excelência. "O objetivo é que os vizinhos se conheçam, se envolvam com os assuntos do prédio e se sintam seguros", diz o alemão Chris Gerlach, que trabalha no mercado financeiro, é casado com uma advogada brasileira, Kátia, e membro do conselho de um edifício na Rua 99, onde o casal mora com a filha pequena. Além de provar que tem caixa para bancar sua cota de ações, o candidato precisa garantir que possui carreira profissional próspera e vida pessoal feliz e saudável. "Tivemos de apresentar ao conselho nove cartas de recomendação escritas por chefes e amigos", conta o brasileiro Marcelo Hallake, 32 anos, que acaba de comprar um apartamento com a mulher, Flávia, ambos advogados. "A aprovação demora tanto que demos entrada na papelada em janeiro e só vamos poder mudar neste mês", acrescenta. Às vezes, o motivo da recusa é mais absurdo ainda. O corretor brasileiro Robson Lemos, da imobiliária Corcoran's, especializado em atender estrangeiros em Nova York, conta que certa vez um casal de clientes europeus foi barrado por ser mais qualificado que os demais moradores do prédio. "Todos devem ser mais ou menos do mesmo nível", explica.

A aflição do candidato a morador só não é maior que a do vendedor do apartamento – enquanto não tiver a aprovação do conselho, ele não poderá passar o imóvel adiante. Além disso, os conselheiros costumam proibir sublocação quando os proprietários se ausentam. Alguns abrem exceção, permitindo inquilinos por no máximo dois anos. É comum, no entanto, que proíbam o infeliz de usar o elevador, confinando-o às escadas. Reformas, evidentemente, só com a aprovação dos conselheiros, e mesmo assim feitas por carpinteiros e pedreiros da confiança deles. Os músicos muitas vezes têm de instalar revestimento acústico nas paredes de seu apartamento. Banheira de hidromassagem não costuma ser aceita, por causa do risco de vazamento. Cachorros devem ter o certificado de adestramento em escolas especializadas, e os que levarem mais de duas cartas de advertência por maus modos serão expulsos. Há prédios em que o conselho faz questão de conhecer o cão e vê-lo obedecer a ordens. Peixes, periquitos e papagaios nem entram.

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RIVER HOUSE
Rua 52 com a Avenida York
O co-op mais cobiçado da cidade. Aceitou Henry Kissinger, mas barrou Richard Nixon. O condomínio de um apartamento de quatro quartos pode custar 7 000 dólares por mês.

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Os co-ops mais luxuosos da cidade foram construídos antes de 1949, o que os caracteriza como edifícios "pre-war" (antes da guerra), projetos feitos com material de primeira e assinados por arquitetos renomados. "Não há nada mais charmoso em Nova York que esses prédios", afirma Brye Brownlie, diretora da revista New York Living. Exemplo disso é o legendário Dakota, na esquina da Avenida Central Park West com a Rua 72, com sua fachada neo-renascentista e detalhes vitorianos. Em frente à entrada, John Lennon, morador, foi assassinado, em 1980. No prédio, que tem um jardim interno rodeado por quatro saguões de elevadores, vive até hoje a viúva, Yoko Ono. Na mesma avenida, o milionário comediante Jerry Seinfeld mora no belíssimo Beresford, um edifício de 22 andares em estilo clássico, e tem sua garagem de carros de colecionador a duas quadras, num prédio de dois andares que comprou e reformou só para abrigar os bólidos, um luxo que provocou muitas reclamações. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger vive no River House, de longe o co-op mais cobiçado da cidade (o ex-presidente Richard Nixon tentou, mas foi barrado). A atriz Barbra Streisand conseguiu driblar a barreira antiartistas de um conselho e comprou um dúplex na Central Park West. Não foi bom negócio. Detestada pelos vizinhos, pôs o apartamento à venda em 1998 e só agora tem um comprador aprovado, que desembolsará 4 milhões de dólares. O dúplex chegou a ser objeto de desejo de Mariah Carey, mas a cantora levou um não dos moradores. Contentou-se, então, com um "condo" em Tribeca. Condos (de "condomínio") são apartamentos mais caros, em prédios mais novos e livres da ditadura dos conselhos. Quer dizer, livres por enquanto. Os corretores comentam que as regras dos administradores dos condos estão ficando parecidíssimas com as dos co-ops. Salve-se quem puder.

Os dez mandamentos

Entre as exigências mais comuns dos condomínios de Nova York se encontram:

Não fazer cópia das chaves para os amigos.

Não deixar entregadores de comida circular pelos andares. Tem-se de ir buscar a encomenda na portaria.

Não pintar a parede do apartamento sem aprovação do conselho.

Não dar festas de arromba.

Não sublocar o apartamento sem autorização do conselho.

Não receber muitos hóspedes.

Só instalar antenas extras de canais a cabo se for uma decisão comum.

Em matéria de bichos de estimação, só cachorros são permitidos, com certificado de adestramento.

Não usar telefone celular no saguão.

Se for músico, instalar revestimento acústico no apartamento antes de se instalar.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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